Brasília, 23/07/2012 - 10:30h
OS PONTOS
CONCRETOS DE ESFORÇO E A PARTILHA
1.
A
ESPIRITUALIDADE CONJUGAL E A SUA PEDAGOGIA
A descoberta
da espiritualidade conjugal foi o grande contributo das Equipas de Nossa
Senhora à Igreja para uma compreensão mais ampla e profunda do sacramento do
matrimónio. Mas é de justiça reconhecer que também foi decisiva a pedagogia que
a acompanhou e que transformou a intuição inicial em algo de concreto e real em
que os casais se possam apoiar para crescerem e perdurarem.
Efectivamente,
esta ideia revolucionária poderia ter ficado no seu enunciado teológico, como,
por vezes, acontece no Magistério da Igreja, se não tivesse sido completada com
a proposta de meios a utilizar de forma a encarná-la na vida.
Como é que
os primeiros casais e o Pe. Caffarel descobriram essa pedagogia que edifica a
espiritualidade
conjugal? Porque a marca de Deus está naquelas realidades terrenas que respondem
ao seu “sim, quero”, ainda que seja apenas em gérmen, e esta convicção fê-los
partir da antropologia, da própria vida. Foi uma descoberta indutiva e não
dedutiva. Não foi, portanto, uma elaboração teórica, mas surgiu ao olhar, com
admiração e ternura, os casais e o que eles procuravam viver, ainda que fosse de
forma incipiente e imperfeita e precisasse de ser levado à plenitude.
Falar de
espiritualidade conjugal e da pedagogia que lhe é própria é urgente nestes
tempos que vivemos para se compreender melhor que o amor de um casal não é só
um sentimento que parece estar condenado a uma inevitável caducidade.
O amor é uma
adesão da vontade profunda de uma pessoa a outra pessoa, pondo em jogo tudo o
que a pessoa é: a inteligência, as emoções, a sensibilidade, a criatividade, a
vontade. Esse amor, que vai durar toda a vida, é como que a obra de arte de um
artista que, para a atingir, passa por crises de expressão, por vezes até por
uma noite escura dos sentidos. É uma coluna em torno da qual o homem dança, uma
fonte da qual o homem bebe, um combate em que ambos se decidem, como dizia
Santa Teresa de Ávila, a não desistir, a perdoar-se mutuamente, a recomeçar
sempre.
O amor do
casal assemelha-se àquelas bonecas russas, de que o Pe. Caffarel tanto gostava,
que se vão abrindo e vão aparecendo uma dentro da outra. No fim, surge a
última, a mais pequena, que nem por isso é a menos importante mas a que
condensa tudo. Da mesma forma, na medida em que o homem e a mulher vão
aprofundando a sua procura da verdade, do encontro e da vontade de Deus, cada
um vai chegando ao seu eu mais profundo, e tudo muda quando esses dois “eu
profundos” se relacionam a partir da comunhão.
O amor do
casal humano mostra, melhor do que qualquer outra realidade terrena, como é o
amor de Deus pelos homens. O Pe. Caffarel descreve-o neste belo texto à maneira
de Péguy:
Casal humano,
minha bem-amada criatura, minha testemunha privilegiada, compreendes agora por
que me és tão querido entre todas as criaturas?
Compreendes
a esperança imensa que deposito em ti?
És portador da minha reputação, da minha glória, és para o universo a grande
razão de esperança, porque tu és o amor.
2.
A TRIPLA
PROCURA QUE NOS É PROPOSTA PELOS PONTOS CONCRETOS DE
ESFORÇO
O amor
conjugal é um sinal do amor de Deus e, no entanto, paradoxalmente, não há amor
mais vulnerável. O amor aos filhos suporta tudo. O amor conjugal precisa de
cuidados contínuos, daquela pedagogia de que vamos falar e que é um tesouro que
as Equipas oferecem. Tendo trabalhado muito na Pastoral Familiar em Espanha e
pertencido ao Conselho Pontifício para a Família, tivemos oportunidade de
conhecer muitos movimentos conjugais e familiares, e podemos dizer-vos que,
havendo nas reuniões mensais muitas semelhanças entre todos, nenhum deles tem
essa pedagogia dos Pontos Concretos de Esforço que, na vida quotidiana e ao
longo do mês, constitui a espiritualidade conjugal e que partilhamos no momento
da Partilha.
Qual é o
sentido que está por trás dos Pontos Concretos de Esforço, e qual é o espírito
que os
torna
actuais e válidos para o futuro?
Nas Equipas
não se escolhem acções de forma arbitrária nem ninguém se mentaliza através de
um mero voluntarismo; antes somos chamados a reflectir e a encontrar as razões
do que nos propõem. Talvez fosse mais fácil incorporá-los na nossa vida se os compreendêssemos
melhor.
Vamos
procurar apresentar-vos, de forma muito breve, o que nos pareceu descobrir a
respeito deles num clima de oração e de escuta aí pelo ano de 1990 e que
descrevemos no documento sobre a Partilha.
a) Os Pontos
Concretos de Esforço são atitudes interiores a despertar, atitudes de vida a assimilar,
na gradualidade e na personalização.
É por isso
que são designados utilizando infinitivos e não imperativos: “escutar”,
“reservar”, “encontrar-se”, “fixar-se”, “colocar-se”.
Não são
coisas que nos são impostas a partir de fora. São um apelo interior a um
esforço pessoal e de casal, um esforço de realismo e de perseverança que abarca
toda a nossa pessoa. Um esforço a que nos obrigamos, individualmente e os dois
juntos, a partir de uns mínimos, para irmos aprofundando, com verdade e com
exigência, um caminho de conversão que não tem como limite senão a santidade.
Nem mais nem
menos.
O amor
precisa que o recordemos, o celebremos, o tornemos presente, caso contrário
apaga-se, esmorece e morre — o que conseguimos graças a pequenos “ritos de
encontro” que cada casal inclui na sua vida, que nos aproximam, actualizam
datas, encontros, recordações, músicas e palavras, que nos reservam pequenos
espaços de tempo e de silêncio. Da mesma forma, uma vida cristã sem “ritos de
encontro” destinados a actualizar em nós o amor e a presença de Deus dilui-se,
perde coesão, não se transforma, não cresce. A pessoa simplesmente “deixa-se
viver”.
b) Nos
Pontos Concretos de Esforço não há dispersão nem arbitrariedade. Estes pontos
têm
uma
coerência interior que se encontra também em toda a metodologia das Equipas, a
todos os seus níveis, uma lógica que os encadeia, objectivos que os integram
uns nos outros. As atitudes constantes que os Pontos de Esforço pretendem ir
despertando em nós são fundamentalmente uma procura tripla, um apelo triplo.
1– Verdade.
Um apelo a
desenvolver a capacidade de viver a partir da verdade e na verdade:
“verdadeiro
encontro com o Senhor” (oração), “verdadeiro diálogo conjugal” (dever de se
sentar), “uma regra para a vida” (a regra de vida).
2– Encontro.
Um apelo a aumentar a possibilidade de encontro e, portanto, de comunhão entre
nós:
“escutar”
(leitura da Palavra), “encontro com o Senhor” (oração), “encontrarem-se marido
e
mulher”
(oração conjugal), “em casal” (retiro).
3– Vontade
de Deus. Um apelo a abrir-nos para descobrirmos a vontade de Deus para a nossa
vida:
“a palavra
de Deus” (leitura), “sob o olhar de Deus” (dever de se sentar), “planear a vida
diante
do Senhor”
(retiro).
Para
assimilar atitudes é necessária uma certa assiduidade, pois só a repetição nos
exercita, nos dá força, nos mantém em tensão. Por isso, também nos é indicada a
frequência: “assiduamente” (leitura da Palavra), “cada dia” (oração conjugal),
“cada mês” (dever de se sentar), “todos os meses” (regra de vida), “cada ano”
(retiro).
É também um
apelo ao agradecimento. No nosso tempo livre, no que é nosso e no que
reservamos sempre para nós, deixamos que o outro, e, ainda mais, que o
absolutamente Outro, tenha um lugar.
3.
– QUE É A
PARTILHA?
A Partilha é
um esforço conjunto de entreajuda espiritual para avançar num caminho comunitário
de conversão. A comunidade não existe pelo simples facto de um grupo de pessoas
se reunir. A comunidade pode criar-se e pode destruir-se. Cria-se quando se partilha
de verdade a vida, quando partilhamos com os outros esse dom de Deus que
recebemos.
Esta
partilha tem lugar durante toda a reunião; começa com o jantar, continua com o
pôr em comum, aprofunda-se no tema de estudo, intensifica-se no tempo de oração,
mas no momento da Partilha procura um objectivo muito profundo. Embora a semelhança
das duas expressões “Partilha” e “Pôr em comum” possa confundir algumas
pessoas, é conveniente mantermos a terminologia adoptada pelo Movimento há mais
de 60 anos. A Carta faz a distinção entre o “pôr em comum” das preocupações familiares,
profissionais, cívicas, eclesiais, dos êxitos e dos fracassos, das dores e das
alegrias, e a “Partilha” sobre aquilo a que então se chamava “obrigações” e
hoje são os Pontos Concretos de Esforço. A realização do Pôr em comum constitui
uma condição necessária para se chegar de maneira verdadeira e profunda à
Partilha.
A Partilha é
o momento da reunião em que cada um acolhe o ser do outro no seu sentido mais
profundo: o
de partilhar o seu projecto cristão, o seu itinerário de conversão, realizando
assim um sinal real de que somos, com os outros, um em Cristo, de que a equipa
quer ser comunidade santa e sabe que
cada casal tem parte da responsabilidade nessa santificação, responsabilidade a
que não pode eximir-se senão em prejuízo do conjunto.
No entanto,
é verdade que cada casal parte de uma determinada situação, tem as suas
dificuldades, um ritmo diferente, capacidades e “talentos”. Ninguém é melhor do
que outro, mas também não há quem não possa ir fazendo frutificar o que
recebeu.
Por que é
que a Partilha é tão difícil?
– Em
primeiro lugar, porque, quando, na reunião, partilhamos sobre os Pontos
Concretos de Esforço, damo-nos conta das nossas fraquezas, dos nossos defeitos,
da repetição das nossas omissões, e isso dói e custa a aceitar.
Dizer em voz alta, reunião após reunião, “não fiz”, “não tivemos tempo”,
“pensei nisso, mas...” coloca-nos diante da diferença que existe entre o que
dizemos e o que realmente fazemos, a distância que medeia entre as palavras
resignadas e o que é o tecido real da nossa vida.
– A segunda
coisa que nos acontece é que formulamos mal as perguntas e as respostas da
Partilha. Em vez de “fizemos” ou “não fizemos”, a que se segue o silêncio
indiferente ou até desaprovador dos outros, deveríamos fazer as perguntas que
contam, as que vão ao fundo e que fazem com que nos digamos a partir da
verdade.
Vamos
enumerar algumas perguntas possíveis.
– Escutar a
Palavra não é só ler, é algo mais, é saborear, ler nas entrelinhas, como se lê
uma
carta de amor:
Que descobri sobre Cristo ao escutar a sua Palavra? Que tipo de resposta provocou
em mim? Essa Palavra iluminou alguma situação da minha vida este mês?
– A oração
pessoal é um encontro dialogal Eu - Tu, não um encontro connosco próprios. Como
consigo
estabelecer esse diálogo? Em que momento do dia? Que tipo de oração faço:
leitura espiritual, com as palavras litúrgicas, de petição, de meditação...?
Consigo fazer silêncio em mim?
– Dizem-nos
que a oração conjugal é um encontro entre “marido e mulher”. Damo-nos conta de
que o mais importante na oração conjugal não é tanto a oração em si mas o facto
de, juntos, mesmo se zangados ou afastados, nos dirigirmos ao Senhor para que
Ele active as graças do nosso sacramento? Que método seguimos? Alguma vez
sentimos se essa oração cura as nossas feridas?
– O dever de
se sentar é um diálogo e, por isso, ambos falam e ambos escutam, e é um diálogo
verdadeiro em que cada um se esforça por não manipular nem enganar o outro. Que
sinal utilizamos como presença de Deus? Tem-nos sido possível comunicar e
encontramo-nos? Sentimo-nos mutuamente acolhidos? Somos capazes de reconhecer a
nossa quota-parte de culpa nas situações de conflito? Temos dito um ao outro
também algo de bom? Que progressos temos feito?
– A regra de
vida é um trabalho pessoal de procura de mais verdade que deve redundar em benefício
dos outros. Que aspecto da minha personalidade tenho trabalhado na regra de
vida?
Como o
escolhi? Que pistas me levaram a detectá-lo? Os outros membros da equipa
poderiam
ajudar-me a
ver com mais clareza a minha regra de vida?
– No retiro,
muito mais importante do que o padre que o prega somos nós, é a nossa atitude
de
reflexão e
de encontro, e para isso há que dedicar tempo suficiente. Que descobrimos sobre
a vontade de Deus no último retiro? Que é que nos impressionou mais? Com que
sentimentos acabámos o retiro? Em cada reunião, bastaria que cada casal se
cingisse apenas a uma destas perguntas sobre aquele Ponto Concreto de Esforço
que nesse mês foi para ele descoberta de mais verdade, motivo de encontro ou indicação
da vontade de Deus. O resto da equipa escuta o que cada casal vai dizendo, com
o espírito e o coração abertos, atentos e compreensivos através do olhar, activos
e acolhedores através da posição do corpo.
4.
– O
ESFORÇO E A GRAÇA
Aqui estão
casais de muitos países e de muitas culturas; casais com uma pilotagem recente
que se descobrem com alegria na reunião de equipa, casais que venceram o
desencanto da rotina com criatividade e continuam na brecha com maior formação,
com uma grande amizade entre si e com uma vida familiar plena, casais que
prestam um serviço ao Movimento ou estão empenhados na Igreja, casais que
continuam fiéis e unidos apesar dos anos e que acompanharam algum membro da sua
equipa na sua passagem para uma Vida nova, viúvos e viúvas que se sentem
membros da equipa em que o outro continua a estar misteriosamente presente e
conselheiros que são amigos, companheiros e mestres. Pela vossa proximidade à
realidade conjugal, puderam compreender que o ensino da Igreja deve ter em
conta não só as necessidades dos casais mas também o que eles descobrem sobre o
seu amor, a sua espiritualidade e o seu sacramento. Unidos, conselheiros e casais,
conseguimos uma maior fecundidade espiritual.
Queremos
partilhar convosco a imagem que escolhemos para a caminhada da nossa própria
equipa.
“Somos seis
casais e um celibatário. Subimos para um barco porque estamos todos
interessados em chegar a essa “outra margem” que se vislumbra ao longe, no
horizonte. Não sabemos muito da arte de navegar nem de instrumentos de
navegação, mas vamos com entusiasmo e alguma incerteza. O lago refulge como uma
promessa. De momento não há vento e o sol brilha, mas intuímos que nem sempre
será assim, que haverá dias de nevoeiro, que haverá temporal e haverá
tempestade. Há outros barcos próximos que também se preparam, como nós, para a
travessia. Disseram-nos que um timoneiro nos acompanha, embora não o vejamos.
Falaram-nos do seu amor pelos que viajam, e que esse amor lhes assegura o
consolo da sua presença. Isto não nos dispensa de olhar bem para o mapa, de
verificar os instrumentos, de usar as velas, de atribuir a cada um uma tarefa
na navegação, consoante as suas qualidades.
Qual é o
nosso objectivo? Queremos ir juntos neste pequeno barco e alcançar a “outra
margem”, que recebe também o nome de Verdade e que tanta gente pretende
alcançar. Cada um de nós tem-se dado conta de que, embora tratando-se de uma
única Verdade, foi tão repartida ao chegar à terra que não a descobriremos
totalmente se a procurarmos sozinhos. Se caminharmos com outros, esses outros
servem-nos de espelho, e o seu reflexo devolve-nos a nossa verdade acolhida, matizada,
completada.
No nosso
barquinho, Luís olha o mapa e interroga-se sobre aquilo em que ninguém pensa
mas acerta. Pilar faz-lhe de contrapeso porque é mais realista. Margarita apoia
os movimentos de Guillermo e Guillermo os de Margarita, e assim ambos
estabilizam o peso. Antonio y Amparo orientam a vela para que receba o máximo
de vento. Mercedes vai cantando enquanto prepara o almoço e Álvaro perscruta o
horizonte com os binóculos. Paco e Maiju seguram o mastro grande para não cair
na cabeça de ninguém. Trini e Juan, que se juntaram a nós no barco, apoiam-nos
a todos. Federico, Carlos e Jovi verificam o rumo e vão animando a tripulação.
O tempo vai
passando e, a pouco e pouco, percebemos que essa “outra margem” não é senão o oceano
que se perde no infinito e, ao mesmo tempo, descobrimos que a Verdade era o
Amor e que a Verdade era a Fé e que a Verdade era a Esperança. E é para essa
Verdade que se funde com o mar que orientamos de novo o rumo, com o coração
ardente, e muitos outros barcos vêm também dos quatro pontos do horizonte.
Esta é mais
ou menos a história da nossa equipa que já navega há quarenta e seis anos e que
orienta o seu leme para a eternidade”.
Não
desanimemos se não conseguimos assimilar as atitudes que os Pontos Concretos de
Esforço nos propõem. É certo que não é fácil, falta-nos tempo e assiduidade,
somos dois e tão diferentes... Além disso, pedimos demasiado ao amor conjugal,
e toda a realidade humana está ferida pelo pecado na sua própria raiz. Também
esperamos demasiado do outro, que, como nós, é uma pessoa limitada.
6 Os anos vão passando com muito poucos êxitos, mas mantemo-nos à tona
como o barquinho de que falámos antes; navegamos e deixamo-nos levar, esforçamo-nos
e ficamos parados embora sem amarras. O importante é que trabalhemos e, ao
mesmo tempo, estejamos abertos, flexíveis, maleáveis.
Esperar não
é instalar-se, é avançar porque sabemos que o que procuramos ainda está para
chegar. E pode chegar de modo inesperado e totalmente imerecido. Não é à força
de sacrifícios que conseguimos viver da Vida de Deus. Só a sua Graça o torna
possível.
O tempo mede-se
de forma muito diferente para Deus e para o homem. Para nós, um momento de graça
pode parecer muito breve em comparação com a duração de uma vida terrena. Para
Deus, um instante de graça pode ter um valor de eternidade. O importante é
acolher a sua graça em algum momento da vida, mantidos na espera finalmente deixámo-nos
amar por Ele. Recordemos a história do ermitão que sonhara que estava diante da
porta de bronze do Paraíso e, desejando encontrar-se com o Senhor, batia e
batia com violência, mas a porta não se abria. Gritava, empurrava com toda a
força aquela porta que permanecia fechada e acabou por adormecer, como o cão que
espera à porta do dono. De repente, foi acordado por um raio de luz. A porta
estava a abrir-se do interior. Empurrando-a para dentro com toda a força, a
única coisa que tinha conseguido era impedir que ela se abrisse. Enquanto
dormia, o Senhor tinha delicadamente aberto a porta para fora, para ir ao encontro
do seu filho e talvez di
zer-lhe: “Se
alguma vez me deixasses a possibilidade de ser o protagonista, dar-te-ia com
doçura, de forma inesperada, o que procuras tão encarniçadamente”.
5.
– TODO O
DOM É UMA VOCAÇÃO
A 25 de
Março de 1973, numa conferência aos responsáveis de sector em que anunciava a
sua retirada da responsabilidade das ENS e reflectia sobre o seu futuro, o Pe.
Caffarel dizia duas coisas que nos parecem essenciais:
A primeira,
que nunca haverá uma verdadeira renovação num Movimento se não se for fiel ao
carisma do início,
se não se reencontrar o dinamismo interno, o impulso do entusiasmo inicial.
Também temos
de aplicar isto ao reflectir sobre a pedagogia.
A segunda,
que desde o princípio a grande pergunta foi: que é o amor? Não há dois amores.
Se conhecermos melhor o amor humano, conheceremos melhor o amor de Deus, e vice-versa.
“Penso, disse
o Pe. Caffarel nessa conferência, que esta meditação sobre o amor nunca deve
ser interrompida, porque é a única realidade que existe; Deus é Amor, o homem é
amor. Não compreendemos nada se nos situarmos fora do amor”.
O que
recebemos nas ENS é um dom: o sentido profundo do amor humano, a sua
espiritualidade, a sua pedagogia, a possibilidade de nos formarmos, de rezar,
de nos ajudarmos mutuamente em equipa, o testemunho e o serviço de outros
casais, a amizade, a preparação e o tempo dos conselheiros espirituais...
São tantas
as coisas que gratuitamente nos são dadas que quando pensamos nelas ficamos
oprimidos pela responsabilidade. Nada disto pode ficar enterrado em nós mesmos
nem no resguardado reduto da equipa. De facto, pelo seu próprio dinamismo, todo
o dom tende a expandir-se, a comunicar-se, porque todo o dom é uma vocação, um
chamamento, uma missão.
Não há
exclusão. Somos chamados a SER, no sentido mais profundo possível, e a integrar
tudo o que somos: espiritualidade e compromisso, contemplação e acção, casal e
mundo, pequena comunidade e Igreja universal, chamamento e resposta.
Se desde os primeiros tempos do Movimento isto já estava bem claro, e
com diferentes formulações se foi repetindo ao longo da história das Equipas,
estamos hoje perante um momento particularmente urgente. Por isso, a orientação deste Encontro
resume-se em dois verbos imperativos e de acção: “Vai e faz”. Como sujeito,
encontramos um pronome pessoal na segunda pessoa, “tu”, que nos impede de nos
escudarmos atrás de outros casais, da equipa, do sector, nem sequer do
Movimento, que nos interpela directamente, “tu”, cada um, cada casal. O que nos
é proposto é fazer “o mesmo”, o que fez o samaritano com o ferido que encontrou
no caminho, “o mesmo” com tantos “feridos” que encontramos na vida, em especial
“os feridos no amor conjugal”. “O mesmo” é o que não estava programado mas é
inevitável, o que o amor dita, embora contenha riscos, o que não tem em conta
as justificações que a razão apresenta, o que só se vê e só compromete se nos
deixarmos mover pela compaixão.
Queridos
amigos, ao lado uns dos outros, animando-nos mutuamente, só a partir de uma
espiritualidade
mais profunda e verdadeira poderemos fazer “o mesmo”.
Alvaro e
Mercedes Gómez - Ferrer Lozano
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