Brasília, 22/07/2012 - 10:30h
Bom dia! É para mim um grande prazer voltar ao Brasil.
Sinto-me muito honrado por ter sido convidado para este encontro das
Equipas de Nossa Senhora. Este é o meu primeiro encontro com o vosso
Movimento. Quem me dera conhecer-vos melhor, assim como as vossas
expectativas e os vossos desafios para ter podido preparar-me melhor.
Lembro-me de um dos meus irmãos que deu uma conferência em Chicago.
Quando ele se sentou, os aplausos não foram muito entusiásticos. Ele
voltou-se para o homem que estava ao seu lado e disse: «Espero que não
tenha sido assim tão mau», ao que o homem respondeu: «Ó, a culpa não é
sua. A culpa é sobretudo de quem lhe pediu que falasse».
Li muitos dos documentos que prepararam para este encontro e aprendi
muito. Vocês estão na linha da frente em algumas questões que são
urgentes para toda a Igreja.
A razão de ser do vosso Movimento é «ajudar os casais a descobrir as
riquezas do sacramento do matrimónio e a viver uma espiritualidade
conjugal» (1). No centro da vossa vocação está a convicção de que o
matrimónio é uma maravilhosa vocação cristã e uma parte essencial de
qualquer sociedade humana. Mas vocês têm plena consciência de que muita
gente considera o casamento difícil. Muitas vezes, é lugar de
sofrimento, de incompreensão e até de violência. Além disso, são cada
vez mais as pessoas que não se casam. É frequente muitas pessoas viverem
juntas e criarem filhos sem sequer pensarem em casamento. Milhões de
pessoas são divorciadas e recasadas. Existem também uniões de pessoas do
mesmo sexo.
Uma grande questão para muitos de vocês é, pois, como ser fiel ao
vosso carisma original e, ao mesmo tempo, encarar a realidade que tantas
pessoas vivem. Todos vocês estão comprometidos no matrimónio e, no
entanto, todos têm amigos, familiares e talvez filhos cujas vidas
seguiram outro rumo. Qual é a vossa missão em relação a eles? Como podem
chegar até eles para partilhar o vosso amor pelo matrimónio sem os
fazer sentir-se excluídos? Estas são grandes questões para toda a
Igreja. E é uma bênção que ousem levantar estas questões de forma
explícita. Tenho de ser honesto. Não tenho respostas simples, mas, pelo
menos, espero que possamos ter um debate honesto e cheio de esperança.
«Veritas», verdade, é a divisa da Ordem dos Dominicanos, e toda a
verdade evangélica é cheia de esperança.
Um homem andava a sobrevoar o sul de Inglaterra num balão de ar
quente. Tinha-se perdido e não fazia ideia de onde estava. Até que
pousou numa árvore. Viu dois homens que passavam e perguntou-lhes:
«Ajudem-me! Onde estou?», ao que um deles respondeu: «Está numa árvore».
«Você deve ser dominicano!» «Porquê?» «Porque o que disse é verdade mas
inútil!».
Pediram-me também que considerasse estas questões à luz da parábola
do Bom Samaritano. Isso é um desafio, porque a parábola não toca
directamente o divórcio ou o casamento gay! Mas é uma exploração
profunda do significado do amor e, assim, pode ajudar-nos na nossa
procura de um caminho a seguir.
Conversa
Esta parábola está inserida numa conversa. O doutor da Lei pergunta a Jesus como pode possuir a vida eterna, e Jesus responde-lhe com o mandamento de amar a Deus e o próximo como a si mesmo. O doutor da Lei pergunta então quem é o seu próximo. Jesus conta a história do Bom Samaritano, terminando com outra pergunta: «Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?». O doutor da Lei responde, e Jesus replica-lhe: «Vai e faz tu também o mesmo». É uma verdadeira conversa pela qual Jesus ajuda o doutor da Lei a avançar para a verdade.
Todo o ensino cristão envolve uma conversa. A palavra “homilia” vem
de uma palavra que significa “conversa”. Isto porque a vida de Deus é
uma conversa eterna entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Jesus é o
Verbo de Deus, que nos convida a entrar na conversa amorosa da Trindade.
Pela sua própria natureza, a verdade cristã não pode ser imposta a
partir de cima. É a Palavra de Deus que suscita a nossa resposta. S.
Domingos fundou a Ordem dos Pregadores em resultado de uma conversa com
um estalajadeiro que durou toda a noite. Ele não podia ter passado a
noite inteira a dizer «Está enganado, está enganado». A conversa implica
aceitação da outra pessoa.
Vocês vêem-se confrontados com a pergunta: Que podem dizer às pessoas
que vivem juntas, aos divorciados recasados ou aos homossexuais? Que
podem dizer que seja, ao mesmo tempo, abertura à verdade das suas vidas e
fidelidade à doutrina da Igreja? Só o podem descobrir se estabelecerem
uma conversa. Falarão com autoridade se derem autoridade à experiência
deles. Se os escutarem, se se puserem no seu lugar, se se puserem na sua
pele, então talvez o Senhor vos dê a palavra certa.
As pessoas tentaram muitas vezes armar ciladas a Jesus fazendo-lhe
perguntas impossíveis de responder. Por exemplo: «Devemos pagar impostos
aos romanos?». Se ele disser que sim, é colaboracionista, mas, se
disser que não, é um insurrecto. «Devemos ou não apedrejar esta mulher
que foi apanhada em adultério?». Se ele disser que sim, é impiedoso, e,
se disser que não, rejeita a lei. Por vezes, esta é também a nossa
experiência. Se afirmarmos com veemência o nosso compromisso para com o
casamento, parece que excluímos os milhões de pessoas cujas vidas
tomaram outro rumo. Se não afirmarmos o casamento, traímos algo de vital
na vida cristã. Como Jesus, podemos sentir que estamos num dilema
impossível!
Mas Jesus encontra sempre um caminho a seguir. Porque a graça de Deus
cria um espaço novo em que se pode ser, ao mesmo tempo, misericordioso e
fiel. Com a graça do Espírito Santo, devemos ousar entrar em diálogo
com pessoas cujas vidas são complexas, e rezar para que encontremos uma
palavra que venha de Deus. Uma palavra inesperada, uma palavra nova, que
é também a eterna palavra do amor. Para ouvir essa palavra, temos de
ousar escutar: escutar Deus que é amor; escutar a Igreja, e escutar, com
abertura de coração e de espírito, aqueles cujas vidas são diferentes
da nossa.
A conversa também nos diz alguma coisa sobre a moral sexual. A moral
sexual não consiste apenas no que é proibido ou permitido. Não consiste
fundamentalmente em regras. O sexo não é principalmente um acto físico.
No verdadeiro amor sexual, o casal fala entre si. Cada um diz ao outro:
«Isto é o meu corpo dado por ti». Cada um oferece ao outro uma palavra
feita carne. A primeira pergunta acerca de qualquer acto sexual não é:
«É permitido?», mas: «Que é que ele exprime?».
Se alguém fizer amor com uma pessoa e a deixar no dia seguinte sem
intenção de a voltar a ver, esse alguém disse uma coisa com o seu corpo
que nega com a sua vida. O significado intrínseco do acto sexual é o dom
de si. É um acto de comunhão e de comunicação. Assim, se falarem com um
jovem casal que vive em união de facto, a primeira coisa não é
dizer-lhes que a relação sexual não é permitida. É ajudá-los a ver o que
ela significa, o que exprime. Convidamos essas pessoas a descobrirem o
profundo e maravilhoso significado da nossa sexualidade.
Creio que o fundamento de toda a moral sexual cristã é a Última Ceia.
Diante do sofrimento e da morte, Jesus dá-se aos discípulos. «Este é o
meu corpo entregue por vós». Foi um acto de fidelidade, mesmo quando
eles não lhe foram fiéis. «Dou-me a vós para sempre». Foi um acto de
generosidade. Dou-vos tudo o que sou. Foi um momento de vulnerabilidade,
quando Jesus se colocou nas mão dos discípulos para que eles fizessem
dele o que quisessem.
A moral sexual ensina-nos a viver essa fidelidade, essa generosidade e
vulnerabilidade um com o outro. E assim, parte da vossa missão é ajudar
as pessoas a verem a beleza da sexualidade. Elas poderão então procurar
como viver esses valores na sua própria situação pessoal. A parábola do
Bom Samaritano tem alguma coisa a dizer sobre cada uma destas coisas.
Quem é o meu próximo?
O doutor da Lei faz uma pergunta: «Quem é o meu próximo?». Parte dele próprio. Quer saber os limites do seu amor. Jesus inverte esta pergunta com outra: «Qual destes três foi o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?». Este é um amor que não tem limites, porque nunca sabemos quem vai precisar de nós.
A pergunta do doutor da Lei é literalmente egocêntrica. Ele vê o
mundo do seu ponto de vista. O maior desafio com que todos nos
confrontamos é sermos libertos deste egoísmo. Começamos esta viagem em
bebés. O bebé recém-nascido é o centro do seu próprio mundo. O
crescimento é a longa descoberta de que existem outras pessoas e de que
elas não existem apenas para fazer a sua vontade. Por trás do peito há
uma mãe. Alguns de nós continuam egocêntricos. Noel Coward, dramaturgo
inglês, encontrou um amigo que não via há muitos anos e disse-lhe: «Não
temos tempo para falar de nós dois, por isso, falemos de mim». Uma vez,
um pensador famoso passou uma temporada em Blackfriars. Chamavam-no ao
telefone e fomos todos à sua procura. Encontrámo-lo na cozinha e
dissemos: «Ah, você está aí». E ele respondeu: «Não, eu estou aqui,
vocês é que estão aí».
A parábola convida o doutor da Lei a esquecer-se de quem ele é e a
identificar-se com o samaritano, o odiado inimigo dos judeus. Ele tem de
ser liberto do estreito mundo da Lei, que formula obrigações precisas.
Tem de se tornar num ser humano, num filho do Deus Universal. Tem de
descobrir quem é através de quem precisa dele.
Isto diz-nos alguma coisa de profundo acerca da natureza do
casamento. Legalmente, o casamento é um contrato que une dois seres
humanos. Cada vez mais, este contrato é considerado temporário. As
pessoas negoceiam contratos pré-nupciais para o caso de o casamento
falhar.
Mas, no casamento, prometemos descobrir quem somos com essa outra
pessoa desconhecida. Um jovem meu amigo casou-se há um par de anos.
Quando tiveram o primeiro filho, foi um momento de revelação. Quando
olharam um para o outro, cada um deles viu alguém que nunca tinha visto
antes, um pai e uma mãe. Quando alguém se casa e tem filhos, morre a
velha pessoa solitária que era antes. Nunca se volta a ser o mesmo,
razão pela qual os pais sofrem muitas vezes de depressão pós-natal. Têm
de chorar a perda do indivíduo solitário que foram e que já não existe.
A cada etapa da vossa vida de casados, descobrirão novos aspectos do
que são e de quem é a pessoa com quem se casaram. Quando um de vocês é
confrontado com a doença, mais uma vez ambos mudam. Se a outra pessoa
tiver uma depressão ou a doença de Alzheimer, haverá uma nova descoberta
a fazer. Estar casado é prometer continuar a viagem da descoberta, ser
surpreendido por si e pelo outro. Martin Buber, filósofo judeu, falou da
verdadeira amizade como “Santa Insegurança”. Ninguém sabe no que se vai
tornar quando empreende o caminho para Jericó.
Vocês prometem deixar a outra pessoa continuar a ser uma surpresa.
Depois de algum tempo, a tentação pode ser pensar que decifraram a outra
pessoa. Ouviram todas as histórias da sua infância, são capazes de
prever as suas graças, sabem o que ela vai pedir no restaurante e do que
se vai esquecer ao fazer a mala para as férias. Mas vocês prometem
deixá-la surpreender-vos. Prometem surpreender-se convosco próprios!
Assim, todo o amor verdadeiro convida-nos a deixar de parte a nossa
autodefinição. Não sei com antecedência quem é a pessoa de quem tenho de
me tornar próximo. Parte do nosso testemunho cristão é não nos
preocuparmos com quem somos. Quando Dietrich Bonhoeffer estava na
prisão, era assombrado por questões sobre a sua própria identidade. Por
fim, aprendeu a deixá-la nas mãos de Deus.
«Quem sou eu? Estas minhas questões solitárias atormentam-me.
Quem quer que eu seja, tu sabes, ó Deus, que eu sou teu».
Na vossa missão neste mundo de relações destruídas, vocês podem
ajudar as pessoas a terem a coragem de se comprometerem nesta viagem,
deixando de parte velhas auto-definições. As pessoas podem viver em
união de facto porque têm medo do risco do compromisso. Podem dar-lhes
coragem. Se são divorciadas recasadas, podem ter medo de voltar a ser
feridas. Podemos convidá-las a empreender a aventura do amor, ousando
ser mais do que tínhamos pensado. Herbert McCabe OP costumava dizer: «Se
amas, serás crucificado; se não amas, então já estás morto».
Amanhã e depois de amanhã, falarei de como o samaritano viu o homem
na estrada e teve compaixão. Hoje, centremo-nos na frase seguinte:
«Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e
cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao
estalajadeiro, dizendo: “Trata bem dele e, o que gastares a mais,
pagar-to-ei quando voltar”».
Neste texto vemos o que é fundamental para qualquer amor e, portanto,
para a moral sexual: fidelidade, generosidade e cura das feridas. Até
ao final desta conferência introdutória vamos olhar para estas
realidades. Isto é o que temos de aprender no nosso casamento e de
oferecer às pessoas que estão noutro tipo de relação.
Em primeiro lugar, vejamos a fidelidade. Na Última Ceia, Jesus
deu-nos o seu corpo para sempre. Não importa que os discípulos não lhe
sejam fiéis; ele ser-nos-á sempre fiel. Se o amor é a vida de Deus,
então o amor deve ser eterno. O matrimónio é um sacramento do amor fiel
de Deus porque é para o melhor e para o pior, «na alegria e na tristeza,
na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida». E nós acreditamos
que o significado intrínseco do dom do vosso corpo a outra pessoa é que
ele é dado para sempre. Será este um ideal longínquo e impossível?
Está muito longe de como muita gente vê hoje o significado do sexo,
muitas vezes simplesmente uma actividade de prazer. Que podemos dizer
aos divorciados recasados? É inútil confrontá-los com o fracasso dos
seus casamentos anteriores. Nenhum de nós pode julgar. Qualquer de nós
podia encontrar-se hoje na mesma situação. Assim, que podemos dizer da
fidelidade no amor?
Os discípulos não foram fiéis na Sexta-feira Santa. No tribunal do
Sumo Sacerdote, Pedro negou Jesus: «Não conheço o homem». A maior parte
dos outros discípulos fugiu. Jesus deu-se àqueles que à partida não eram
fiéis. Eles têm de aprender lentamente a ser fiéis. Pedro levou muito
tempo até se tornar uma rocha. Na praia, Jesus perdoa-lhe a sua falta,
mas ele ainda tem que aprender. Segundo uma lenda antiga, Pedro fugia de
Roma num tempo de perseguição e encontrou Jesus, que ia na direcção
oposta. Pedro perguntou a Jesus: «Aonde vais?, Quo Vadis? O lugar está
hoje assinalado por um restaurante caro a que os pobres dominicanos não
se podem permitir ir. E Jesus respondeu: «Vou morrer pela segunda vez».
Pedro, então, deu meia volta e foi enfrentar a morte. Finalmente, ao
cabo de um longo período, que durou toda a sua vida, tornou-se uma
pessoa fiel.
Assim, a fidelidade não é uma coisa que simplesmente se tem ou não se
tem. As pessoas que vivem uma segunda ou terceira relação podem ainda,
como Pedro, aprender a virtude da fidelidade a outra pessoa. Todos nós
aprendemos lentamente a ser pessoas fiéis. A fidelidade é muito mais do
que não cometer adultério, embora isso faça parte da fidelidade. É ser
fiel à verdade da outra pessoa. Um professor universitário dizia que não
se devia ser demasiado verdadeiro. Um dia, disse à sua mulher, que
parecia um pouco fatigada de manhã: «Minha querida, como és bonita de
manhã». E ela respondeu: «E o resto do dia?».
A fidelidade é estar atento ao que o outro vive, aos pequenos sinais
de decepção ou de tristeza, aprendendo a desbloquear a sua alegria, a
compreender os seus medos e a não julgar os seus fracassos. Tudo isto é
fidelidade, e todos nós estamos lentamente a aprendê-lo.
Precisamos de aprender a fidelidade em todas as nossas amizades, pois
cada amizade é uma parte do amor eterno de Deus. Fidelidade aos nossos
pais quando ficam velhos; fidelidade aos nossos filhos, mesmo se eles se
afastam de nós; fidelidade aos nossos amigos, mesmo se eles se
divorciam e voltam a casar pela quarta vez; fidelidade à Igreja, mesmo
quando ela nos decepciona e nós desejamos criticá-la. Os membros da
Igreja são chamados “fiéis”. Qualquer amor verdadeiro é sempre para
sempre. Assim, parte do que podemos aprender no nosso casamento e levar
ao mundo de relações desfeitas é a virtude da fidelidade. Nunca é tarde
demais para recomeçar, como aconteceu com Pedro.
Jesus sabe que Judas o vai entregar aos seus inimigos, que Pedro o
trairá e que os outros discípulos vão querer não ter nada a ver com ele.
Ele toma estas traições e faz delas um dom. «Isto é o meu corpo
entregue por vós». Vocês entregar-me-ão aos romanos e pretenderão não
ter nada a ver comigo. Mas eu transformo a vossa entrega em dom. Esta é a
suprema generosidade do amor divino.
Diante da traição nas nossas relações, será que vivemos essa suprema
generosidade? Se a outra pessoa falha, afirmamos a nossa própria
superioridade moral? Utilizamos as suas falhas para dominar? Mas Jesus
não o fez. Fez da falta dos discípulos um momento de graça. Fez dela o
momento de uma intimidade nova e mais profunda. Não houve censura
alguma.
Nesta secção não falei do Bom Samaritano porque ele não se vai casar
com o homem que caiu nas mãos dos salteadores! Mas, no entanto, ele
encarna uma espécie de fidelidade. Descobre o homem e cuida dele.
Depois, deixa-o na estalagem e prossegue o seu caminho, prometendo
voltar. Mostra amor pelo homem, mas cada um deles deve viver a sua
própria vida. Aproxima-se do homem na sua situação crítica, mas, no
entanto, não interfere na sua vida.
O amor de Deus habita este mesmo dinamismo de proximidade e não
interferência. Para nós, existir é sermos amados por um amor que é
extremamente íntimo e que, contudo, nos dá espaço para sermos nós
próprios. O nosso amor é uma parte ínfima desse amor divino que nos
sustenta no âmago do nosso ser e que nos deixa ser nós próprios.
Sto. Agostinho disse que Deus está mais próximo de nós do que nós
mesmos. Para descobrirmos Deus, fazemos uma viagem interior, e
descobrimo-lo como a pulsação que nos sustenta no nosso ser. No âmago do
meu ser não estou sozinho. Sou amado para ser eu próprio a cada
momento. Deus está mais próximo de nós do que o nosso marido ou a nossa
mulher.
E, contudo, Deus deixa-nos ser. Deus diz: «Faça-se a luz» e a luz foi
feita. Herbert McCabe escreveu: «A criação é simples e unicamente
deixar as coisas ser, e o nosso amor é uma ténue imagem disso» (2). Deus
não pula diante de nós dizendo: «Eh, olhem para mim. Eu amo-vos». Deus é
incrivelmente discreto.
O nosso amor fiel tem certamente necessidade de aprender uma certa
combinação de intimidade e de deixar a outra pessoa respirar. Herbert
escreveu: «O que nos dá campo de acção, o que nos dá espaço para
crescermos e sermos nós próprios é o amor que nos vem de outra pessoa. O
amor é o espaço em que podemos desenvolver-nos, e é sempre um dom… Dar
amor é dar o dom precioso de nada, é dar espaço… Dar amor é deixar o
outro ser» (3).
S. Tomás de Aquino escreveu que «no amor, os dois tornam-se um só mas
permanecem distintos». A arte de amar sabe quando ser um e quando ser
dois, quando estar próximo e quando dar espaço. Por vezes, posso querer
intimidade, mas o outro tem necessidade de respirar. Ou talvez eu queira
estar sozinho, mas vejo que a outra pessoa deseja um abraço. O
verdadeiro amor consiste em estar aberto àquilo de que o outro precisa
nesse momento. Às vezes, os adolescentes que atravessam um período
difícil não sabem o que querem. Se os abraçamos, dirão: «Deixe-me em
paz», e, se o fizermos, dirão: «Ninguém gosta de mim». Nada está bem. E
amá-los significará suportar esse período de confusão.
Será a mesma coisa na vossa missão junto das pessoas que vivem
relações feridas. Terão que descobrir quando estar próximos e oferecer
intimidade e quando se conter e não se intrometer. Isto implica uma
grande sensibilidade, para poder ler os seus rostos e compreender a sua
linguagem corporal.
Uma última palavra sobre violência: o samaritano deixa a segurança de
Jerusalém e aventura-se no mundo violento, onde encontra um homem que
foi deixado como morto. A vossa missão leva-vos também a um mundo
violento, onde encontrarão muitas pessoas feridas.
Todas as nossas relações são marcadas por feridas. No casamento há
feridas de decepção: Ele esqueceu-se outra vez do nosso aniversário de
casamento! Também feridas de infidelidade, feridas de palavras violentas
ou silêncios agressivos, e até verdadeiras feridas físicas de violência
doméstica. As pessoas que vivem outras formas de relação também terão
feridas. Feridas de relações anteriores que correram mal, de incertezas.
Os homossexuais sofrerão as feridas da não aceitação, dos preconceitos,
talvez rejeição por parte das suas famílias. Se queremos oferecer-lhes
cura, teremos de encarar as nossas próprias feridas e tornar-nos pessoas
que gozam do próprio shalom de Deus.
Há uma relação estreita entre violência e sexo. Muito sexo é
deformado pela violência. No Antigo Testamento, vemos o rei David tomar à
força Betsabé, mulher de Urias o hitita, e depois mandar matar o marido
dela. Hoje vemos a violência da violação em zonas de guerra como o
Congo, a violência do abuso de crianças, a violência da prostituição.
Permitam-me que me cite: «A Última Ceia ensina-nos que o cerne de uma
moral sexual cristã é a renúncia à violência. Procuramos a
reciprocidade e a igualdade. Quando alguém deseja o corpo de outra
pessoa, esse desejo não deve ser ávido, procurando apoderar-se do corpo,
como se este fosse um pedaço de carne a ser devorado. Temos de aprender
a desejar de forma a deleitar-nos com o outro, a prezar a sua
vulnerabilidade, a ter prazer na sua existência. Devemos deleitar-nos
com o outro como Deus se deleita connosco, ternamente e sem dominação.
Se houver posse, esta tem de ser mútua. Como diz S. Paulo, “A esposa não
pode dispor do próprio corpo, mas sim o marido; e, do mesmo modo, o
marido não pode dispor do próprio corpo, mas sim a esposa” (1 Coríntios
7,4)» (4). Se queremos chegar às pessoas no mundo das relações feridas,
então temos de ousar encarar toda a violência no nosso próprio
casamento, seja ela palavras que ferem, desprezo ou mesmo violência na
nossa sexualidade. Então seremos capazes, como o Senhor ressuscitado, de
dizer às outras pessoas feridas: «A paz esteja convosco».
Há também a grande ferida da pobreza. Graças a Deus, o Brasil está a
tornar-se uma potência económica, e milhões de pessoas têm sido libertas
da pobreza. Mas, no entanto, o nosso mundo está ferido por terríveis
desigualdades de riqueza, com mais de um bilião de pessoas em pobreza
aguda. A pobreza é destruidora do casamento. Se uma pessoa é pobre, tem
de viajar para longe para encontrar trabalho, e, muitas vezes, os
trabalhadores são separados das suas famílias e dos seus filhos. O
desemprego é destruidor da vida de família. Um estudo na Grã-Bretanha
mostrou recentemente que os homens desempregados recebiam, geralmente,
enorme simpatia e apoio por parte das suas mulheres durante cerca de
seis semanas. Depois, o homem começa a perder confiança em si e, por
fim, a estima da mulher. Assim, amar e promover o casamento implica
também a luta contra a pobreza e a oposição às crescentes desigualdades
do nosso mundo.
Tenho que acabar! Vocês enfrentam um grande desafio, que é um desafio
para toda a Igreja: Como podem ser fiéis à vossa espiritualidade
conjugal e, ao mesmo tempo, ter uma missão no nosso mundo despedaçado,
em que tanta gente vive outras formas de relação: a união de facto, os
divorciados recasados, os homossexuais? Que missão têm neste mundo de
relações feridas e desfeitas?
Vimos que Jesus conversa com o doutor da Lei. Toda a missão cristã
implica conversa em que falamos e escutamos, ensinamos e aprendemos. Se
ousarmos escutar — Deus, a Igreja e os que sofrem —, então o Senhor
dar-nos-á uma palavra que seja fiel e nova. A parábola também sugere
alguns caminhos para avançar. Todo o amor convoca-nos para além de
qualquer identidade estabelecida. Temos de deixar de parte as nossas
autodefinições prévias. Todos somos chamados a amar com fidelidade. Isto
é um desafio para nós, mesmo para aqueles cujo casamento é forte. Temos
de aprender a ser vulneráveis, correndo o risco de ser feridos, como
Jesus, mas com a esperança de que todo o ser humano, independentemente
do que tiver feito, está a caminho de um amor que ultrapassa toda a
nossa imaginação. Se curarmos o nosso próprio casamento de toda a
violência, então seremos portadores da paz de Cristo.
1) Guia das Equipas de Nossa Senhora, p. 11.2) God matters, p. 108s
3) God matters, p. 108.
4) Lytta Basset, Eric Fassin and Timothy Radcliffe Christians and Sexuality in the Time of Aids London 2007 p. 62.
Postado por: http://www.brasilia2012.com.br/ens/index-pt.php
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