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domingo, 14 de abril de 2013

XI ENCONTRO INTERNACIONAL DAS ENS - BRASÍLIA/DF - A COMPAIXÃO NO CASAL - FRANÇOISE E RÉMI GAUSSEL, FLORENCE E JEAN PHILIPPE JOUBERT

 Brasília, 24/07/2012 às 9:00 h












 Hoje vamos meditar na expressão utilizada por S. Lucas na parábola do bom samaritano:
Encheu-se de compaixão. Que relação existe entre a compaixão e o amor no casal?
Ontem, a Maria Carla e o Carlo debruçaram-se sobre a importância que Jesus dá ao olhar pousado sobre o outro. Nós vamos ver o papel que o olhar desempenha na relação amorosa e a sua evolução ao longo do tempo, para depois reflectirmos no lugar a ser dado à compaixão no casal.

Françoise 1

Em cena temos gente anónima: um sacerdote, um levita, um samaritano, todos três de passagem, e um homem no chão, meio morto, ferido por salteadores; em segundo plano, o dono da estalagem situada no caminho que vai de Jerusalém a Jericó.

No contexto da época, o samaritano é considerado um herético face aos dois honrosos servidores do Templo. Todos três vêem o ferido, mas só o samaritano se aproxima dele. O levita e o sacerdote mantêm-se a distância do que pode ser um cadáver que os poderá contaminar: ambos respeitam assim o interdito ditado pela Lei. Lucas diz a respeito de cada um deles: «passou». Aquele homem não lhes interessa. A visão que têm dele permanece ao nível de uma simples percepção sensorial. O samaritano, pelo contrário, ultrapassa a simples visão; não só se aproxima como também se inclina sobre ele para o socorrer. Vários verbos de acção mostram que ele dá importância àquele que, no momento anterior, era um estrangeiro, que sabe fazer-se próximo dele: Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem. A série de verbos de acção sublinha a sua solicitude.

Lucas tinha usado para os três actores a expressão «ao vê-lo». Mas o olhar do levita e do sacerdote não era da mesma natureza que o do samaritano. Os dois primeiros estavam centrados em si próprios, no que era conveniente fazer por eles e não pelo outro. O terceiro, esse, não procede da mesma forma, descentra-se de si próprio para ir ao encontro do outro numa dinâmica construtiva. O verbo “ver” em grego traduz o processo mecânico da reflexão do objecto nos olhos, mas, em certas circunstâncias, toma um sentido mais subjectivo, o de “olhar”, ou seja, agora os olhos dirigem-se ao objecto: olham. A expressão “encheu-se de compaixão” justifica a atitude do samaritano. Em grego, encher-se de compaixão tem um sentido muito mais forte, significa “ser tocado nas entranhas”, isto é, ser comovido até ao mais profundo do seu ser.

O encontro faz também parte da história entre um homem e uma mulher que  depois se comprometerão na via do casamento. Como é que dois seres completamente estranhos um ao outro vão deixar pai e mãe para fazer aliança? Nesse homem e nessa mulher que se encontram, dá-se um processo semelhante ao que nos é descrito no versículo «vendo-o, encheu-se de compaixão». Para que se crie entre eles uma relação, é necessário que a primeira percepção visual produza num e no outro um clique, um choque, uma emoção, numa palavra, que ele seja tocado nas entranhas para que os olhos de cada um decidam voltar a dirigir-se para o outro. Este olhar é uma primeira palavra não verbal da comunicação.

Há quem fale deste estado como de um encantamento em sentido próprio e em sentido figurado. Em todo e qualquer encontro há uma parte de mistério.

Florence 1

«Em todo e qualquer encontro há uma parte de mistério», disse a Françoise. Vou contar-vos o nosso, que para nós continua cheio de mistério! Tínhamos 18 anos. Estudávamos na mesma faculdade de medicina em Paris. Um dia de Outubro do 2º ano, iniciávamos os trabalhos práticos de anatomia. Tratava-se de compreender o funcionamento das articulações, e estávamos a observar ossos verdadeiros. Volto-me, então, para trás para passar um osso ao meu vizinho de trás, e encontro o olhar do Jean-Philippe. Um olhar inócuo, neutro, poderia dizer-se inocente, pois nunca nos tínhamos visto, mas que teve em mim o efeito de um raio. Apaixonei-me à primeira vista pelo seu olhar. Pareceu-me que talvez isso fosse recíproco. Todos podemos ver, num encontro importante da nossa vida, uma sucessão de coincidências a que alguns chamariam acaso, mas a que nós, cristãos, chamamos Providência.

O Senhor, ainda que confesse não ter pensado logo nisso, tinha posto no meu caminho um próximo diferente, tinha-me permitido ver que esse “colega” era diferente e se ia tornar no meu companheiro de viagem, depois, melhor, o homem da minha vida e sobretudo o meu marido. Como é que esse simples olhar trocado num contexto tão pouco romântico bastou para despertar em mim o desejo de me interessar por ele? Como é que percebi tão depressa que éramos feitos um para o outro? Continua a ser um mistério… «O coração tem razões que a própria razão desconhece», diz o filosofo Blaise Pascal.

Depois muito rapidamente fomo-nos conhecendo melhor e percebemos que gostávamos um do outro. Daí a pensar que éramos feitos um para o outro, que éramos “compatíveis”, se assim se pode dizer, e que íamos dar-nos um ao outro para “nos compadecermos” em todas as etapas da nossa vida, isso já não foi tão rapidamente evidente para ambos. Somos forçosamente diferentes, mas, por isso, complementares. É graças a isso que vamos poder progressivamente entender-nos, entreajudar-nos, e assim desenvolver compaixão pelo nosso cônjuge.

Jean-Philippe 1

Então, a Florence agradou-me imediatamente. Desejei-a, admirei-a e qui-la para mim.
Ao mesmo tempo, o seu olhar exprimia-me o seu desejo, o seu impulso recíproco.
Sentíamos já que éramos importantes um para o outro. Haverá satisfação em ser desejado?
Isso é evidente.

O nosso amor cresceu, amadureceu, libertou-se da sua emoção inicial e construiu-se sobre um conhecimento, um respeito e um dom recíproco. É a passagem do Eros ao Ágape, o que o nosso Papa Bento XVI tão bem nos ensinou. Assim, transformo o meu primeiro impulso, «quero-a para mim», em «amo-a por ela».

Os meses que se seguiram ao nosso primeiro encontro confirmaram a nossa impressão inicial de que éramos feitos um para o outro, que existia entre nós um profundo entendimento. Sem demasiados ajustamentos, o que é fácil aos 18 anos, confortava-nos a ideia de que éramos compatíveis para nos darmos um ao outro por toda a vida. «O meu amado é para mim e eu para ele», como lemos no Cântico dos Cânticos. Decidimos, pois, ser um para o outro o próximo mais próximo unindo-nos pelo sacramento do matrimónio, e assim tornarmo-nos no bom samaritano do nosso cônjuge.

Como passar de ser compatível a ser compassivo? É um pouco a mesma evolução, o mesmo amadurecimento que permite a passagem do Eros ao Ágape. Para termos a certeza de que éramos compatíveis, partimos dos nossos gostos, das nossas ideias e dos nossos ideais, da nossa experiência e dos nossos projectos comuns. Para sermos e nos tornarmos compassivos um para com o outro, vejo isso mais como um impulso do coração, o impulso de todo o meu ser para com a pessoa amada. É a expressão de um amor gratuito, sem esperar nada em troca, de um amor que se pode traduzir na sua mais bela expressão por Caridade. Como diz S. Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, texto muitas vezes escolhido para as celebrações do matrimónio, «o amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento». Este impulso espontâneo, natural numa relação amorosa, precisa de ser mantido, apoiado pela vontade, pela oração, pelo perdão. Voltaremos a isto. Em que circunstâncias exercemos a nossa compaixão para com o nosso cônjuge? Espontaneamente, eu associava a palavra “compaixão” a situações dolorosas, a provações sérias por que, graças a Deus, não passámos. Por isso, não me sinto a pessoa ideal para vos falar da minha experiência. Mas, em minha opinião, seria um erro esperar por ter de passar por provações para exercermos a nossa compaixão. «Vós estais no mundo», diz-nos Jesus no evangelho de João 17,11. É, pois, cada dia, a cada instante, sem esperar por uma provação, que posso, que devo encher-me de compaixão no meu casal, na minha família, pela minha disponibilidade, pela minha escuta, por uma palavra, por um olhar como no primeiro dia. A disponibilidade como expressão da compaixão é uma dificuldade real para mim, assoberbado como tantos outros pelo turbilhão de actividades profissionais ou não. A fidelidade à compaixão é realmente uma luta diária. No evangelho de Mateus (25,40), Jesus diz-nos: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes». Se eu não fizer estes gestos de amor ao meu próximo mais próximo, que é o meu cônjuge, como posso pretender ter gestos de amor para com Deus?

Rémi 1

Aprofundemos um pouco a palavra “compaixão”; esta palavra, em hebraico, evocava o sentimento de uma mãe para com o seu filho. Maria é a própria imagem da compaixão em relação a Jesus. Em grego, como já vimos, esta palavra significava “ser tocado nas entranhas”. O sentido desta palavra evoluiu um pouco em latim, visto indicar o facto de sofrer com. Em todo o caso, este termo exprime um sentimento muito forte, o desejo de se fazer próximo do outro. Mas a compaixão será por isso uma componente do casal? Fará parte da identidade conjugal? Um casal jovem terá certamente dificuldade em responder espontaneamente que sim a estas perguntas, porque a primeira fase do amor deslumbra e pode fazer crer que toda a vida vai ser à imagem da fusão vivida no início. No entanto, o grão de trigo semeado no momento do casamento é chamado a morrer para dar fruto. Na verdade, a admiração do início vai e deve transformar-se a pouco e pouco. Como dizia Timothy Radcliffe a um jovem noviço, «Você acabou de nos admirar, agora vai poder começar a amar-nos». O mesmo se passa na relação dos cônjuges. Vai ser necessário que o nosso olhar vá além das aparências, dos pressupostos. Vamos ter de aceitar o outro na sua realidade, no seu mistério. Gustave Thibon dizia: «Não é desejável divinizar o ser amado».
Construir uma imagem do outro, projectar nele as próprias ideias e representações é a morte da relação. Será necessário aprender a olhá-lo com o coração. A espiritualidade leva-nos a nunca reduzir o outro a uma imagem, a ter consciência de que o outro ultrapassa sempre as representações que fazemos dele. Começar a amar é tornar-se próximo do outro, fazer-se seu próximo. Para acolher o outro na sua diferença, a compaixão é-nos necessária, e ela nascerá desse olhar de amor, desse olhar do coração. Não se esqueçam: «vendo-o, encheu-se de compaixão». A vocação conjugal pede-nos que saiamos de nós próprios, que nos descentremos de nós para nos pormos à escuta do outro. Como S. Paulo, teremos de nos «revestir de sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade e de paciência». O amor absoluto, como Deus ensina, é dom de si. Nunca esqueçamos a maravilhosa palavra pronunciada por Jesus, seu Filho bem amado: «Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos». Mas esta exigência do amor pode revelar-se terrivelmente difícil de aceitar e de viver no quotidiano. É bem evidente que esta compaixão que nos impele para o outro só pode ganhar todo o seu sentido se o nosso cônjuge aceitar «dar-se a conhecer». O ferido da parábola do bom samaritano deixa-se olhar na sua fragilidade, na sua pobreza, aceita ser ajudado, aceita a compaixão do outro. Cada um no casal deve consentir em reconhecer que precisa do outro. Isso não pode limitar-se à partilha de bens materiais e morais. É preciso entregar também o seu eu profundo. Exercer este tipo de compaixão no casal precisa de tempo, de romper com o ritmo infernal que muitas vezes se impõe aos casais jovens. À imagem de Jesus, demo-nos tempo para nos retirarmos do mundo num encontro coração a coração com Deus, fonte de todo o amor. No contacto com ele, a graça do sacramento que demos um ao outro penetrar-nos-á e ajudará cada um de nós a voltar a dizer esse sim do nosso casamento, a converter-nos cada dia mais para
tendermos para aquela comunhão que fará do nosso casal «um só coração e uma só alma», como se diz dos primeiros discípulos (Act 4,32).

Florence

Uma das questões que nos colocámos ao reflectir neste tema da compaixão é a relação que pode existir entre compaixão e compreensão: é sempre necessário compreender-se para se compadecer do outro? Certamente que não, pois pode-se ter compaixão mesmo sem se conhecer, como nos mostra o bom samaritano.
No âmbito da nossa vida de casal, porém, há certamente um conhecimento do outro que cresce com o tempo e que ajuda à compaixão. Mas isso não quer necessariamente dizer que nos compreendemos sempre.

Vou dar-vos um exemplo concreto. O Jean-Philippe, como muita gente apaixonada e obstinada, tem por vezes um temperamento irritadiço. As suas irritações não são frequentes, mas às vezes surgem sem que a razão me pareça muito clara ou suficiente. Por uma contrariedade que me parece mínima, seja eu a causa dela ou não, ele pode irritar-se sem que eu compreenda realmente a razão, e sobretudo sem que eu saiba como reagir, como me comportar para o apaziguar. Como lhe digo muitas vezes, mesmo depois de 20 anos de casados, faltam-me páginas no manual de instruções… mas isso talvez seja bom, temos sempre coisas a descobrir no outro!

Neste exemplo, sofro por ele, porque sei que ele próprio sofre com essa irritação, e, por isso, a minha compaixão exerce-se mesmo sem compreensão. Ela é útil para lhe provar e lhe voltar a dizer que o amo mesmo nesses momentos de não compreensão.

Dito isto, o que conheço do carácter do Jean-Philippe ajuda-me a saber que a irritação não durará muito e que, depois desse episódio, ele saberá pedir-me perdão se me tiver ferido, ou sobretudo saberá perdoar-me se for eu quem esteve na origem da sua alteração de humor. A nossa compaixão mútua reforçará então o nosso amor, sobretudo se tivermos sido capazes de o exprimir a frio, mais tarde, sendo o melhor momento o do dever de se sentar.

Jean-Philippe 2

O conhecimento do outro, bem o sentimos, permite ter por ele uma compaixão mais profunda e ter dela uma expressão mais justa. A sua expressão precisa de se ir ajustando ao longo do tempo, tanto para quem a sente como para quem a recebe.


A compaixão no casal enriquece-se com a sua história, com os anos vividos juntos. Nós entrámos nas Equipas de Nossa Senhora dez anos depois de casarmos e desde há pouco podemos dizer que caminhámos durante mais tempo (mais intensamente, é óbvio) como equipistas do que não o sendo. As Equipas fizeram crescer a nossa fé através da nossa vida de equipa e dos pontos concretos de esforço, uns vividos em casal e outros individualmente. Mas foi sobretudo a oração em casal e o dever de se sentar que fizeram crescer a nossa vida espiritual de casal e o nosso conhecimento mútuo mais íntimo.


Foi o dever de se sentar que nos motivou a entrar para as Equipas, e os seus frutos não nos decepcionaram. Ele é a nossa bóia de salvação, o nosso farol na noite ou o nosso porto de matrícula quando está bom tempo. Fazemos questão de lhe ser fiéis mensalmente, ou motivados por algum acontecimento importante ou estimulados no último momento pela data da reunião de equipa. É também a nossa rampa de lançamento para a regra de vida que o conclui. Partimos do que partilhámos para escolher ou continuar uma regra de vida pessoal ou comum. Por exemplo, se não estive suficientemente disponível, atento ao que a Florence vive no seu trabalho, tomo como regra de vida dedicar-lhe tempo com mais compaixão.

O dever de se sentar é em si um exemplo concreto de disponibilidade para o outro e, por isso, uma expressão total da nossa compaixão. É também um momento único de partilha em que nos entregamos um ao outro sob o olhar de Deus. Voltamos ao versículo de Génesis 2,25: «Estavam ambos nus, mas não sentiam vergonha». Partilhamos, entre outras coisas, as nossas dificuldades e os nossos sofrimentos. Podemos contar com a benevolência do cônjuge porque temos como regra absoluta não interromper o que está a falar e não cedemos. Finalmente, através dessa partilha, orientamos ou esclarecemos a compaixão do nosso cônjuge, o seu objectivo mas também a forma como a sua expressão é sentida. É importante partilhar o que sentimos dessa compaixão, porque pode ser fonte de discórdia, o contrário do resultado esperado.

Françoise 2

Este encontro sob o olhar de Deus desenvolve uma qualidade essencial à comunicação no casal: a escuta. A escuta contribui para purificar o nosso olhar sobre o outro, a discernir a profunda expectativa do outro. Jesus, no evangelho, mostra-nos como é importante responder de forma correcta aos pedidos do outro. «Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber…». A atenção que damos ao outro para nos fazermos próximo dele passa pela escuta. Esse momento privilegiado do dever de se sentar, em ruptura com o quotidiano, permite-nos reconsiderar o outro, percebê-lo numa atitude de respeito e de estima: de resto, a palavra “respeito” vem do latim respicere, lançar um segundo olhar sobre alguém. No quotidiano, muitas vezes não prestamos atenção um ao outro. Assim, énos dada uma ocasião para parar e olhar-nos de novo, condição prévia indispensável à compaixão. Convidar Deus para o nosso encontro a dois ajuda-nos a esquecer-nos de nós mesmos e a tornar-nos totalmente presentes ao outro. Pode ser-nos dada a graça de nos libertarmos do nosso ego. Ficamos então em condições de viver a reciprocidade. No dom e no acolhimento recíprocos, cada um é alimentado e, por sua vez, alimenta o outro. O nosso olhar purifica-se de todo o julgamento e liberta-nos assim do sentimento negativo de culpa para dar lugar à verdadeira comunhão tão querida do Pe. Caffarel e convidar cada um de nós à esperança e à conversão. Construir uma verdadeira comunhão entre nós é garantia de uma intimidade bem sucedida.

Jean-Philippe e Florence 3

JP1: Efectivamente, a comunicação no casal é fundamental, mas nem sempre fácil. Uma das nossas dificuldades é a forma como exprimimos a compaixão no nosso casal e, portanto, a forma como ela é sentida pelo outro. O que é verdadeiro para a compaixão encontra-se também em numerosas formas de comunicação do casal: a entreajuda, os sinais de afecto, os cumprimentos ou os conselhos. Mais precisamente, eu tenho tendência a fazer pela Florence o que gostaria que ela fizesse por mim. E vice-versa. É compreensível, movido por boas intenções, e isso corresponde mesmo ao versículo do evangelho de Mateus 7,12: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles». Isso tem os seus limites,
pois o ser humano não é perfeito.

Dou-vos dois exemplos. A Florence não gosta que eu lhe diga que ela está
sobrecarregada com trabalho. Ora, quando lhe digo isso, exprimo-lhe a minha admiração por tudo o que ela assume, em casa e fora, em particular no seu trabalho no hospital.
Exprimo-lhe também o meu desejo de a ajudar.

FL1: Mas eu não gosto que me digam que estou sobrecarregada com trabalho, porque isso quer dizer que não sou capaz de assumir tudo, que não consigo, que não estou à altura das minhas várias responsabilidades. Por isso, vou evitar dizer ao Jean-Philippe que ele está sobrecarregado com trabalho, para não o ferir, quando ele esperava ouvir outra coisa.

JP2: Se ela me diz que estou sobrecarregado com trabalho, isso para mim é um cumprimento: «fazes muitas coisas, tens muitos recursos para ser bem sucedido, está bem o que tu fazes». Em contrapartida, num segundo exemplo, não gosto que ela me diga que pareço cansado, porque o que oiço é «estás com má cara, não vais ser eficaz».

FL2: Mas comigo é o contrário; aceito de bom grado que o Jean-Philippe me diga que pareço cansada, até gosto, porque para mim é sinal de que ele me dá atenção, de que está atento ao que eu sinto, de que tem consciência de que assumo muitas coisas, em resumo, de que se compadece do meu cansaço.

A dificuldade desta diferença de interpretação das palavras é dupla: por um lado,
evitamos por vezes dizer uma frase de compaixão para não ferir o outro, quando justamente esse outro esperava uma palavra que exprimisse que o seu cônjuge compreendeu que ele estava a sofrer; e, por outro lado e ao contrário, pode acontecer-nos ferir o outro por uma frase de compaixão que foi mal interpretada. Daí a importância do ajustamento que temos de fazer à medida que nos vamos conhecendo melhor, que vamos sabendo o que o nosso cônjuge deseja ou precisa, ou não. Se este ajustamento não se fizer, se continuarmos a dizer o que gostávamos de ouvir e não o que ele (ou ela) gostaria de ouvir, chegamos a um efeito perverso da compaixão que pode aproximar-se da condescendência, e acabar em conflito.
Não será demais repetir a ajuda preciosa que nos dá o dever de se sentar para ajustarmos os nossos comportamentos e as nossas palavras, e evitar certos conflitos indesejáveis quando se trata de uma compaixão por definição cheia de boas intenções!

JP3: Podemos então perguntar-nos o que faz com que a compaixão seja mal recebida no casal quando ela é a expressão do nosso Amor. Vimos que um e outro podem não ter as mesmas reacções, ou ter até reacções opostas. Isto pode ser explicado por uma sensibilidade diferente e, de forma mais global, pela alteridade homem-mulher.

Mas se ambos recebemos mal a compaixão expressa, é porque não aceitamos a sua intenção. Esta intenção tem, efectivamente, uma relação com um dos nossos defeitos, com uma das nossas fraquezas que preferimos mascarar ou esconder.

Se nos reportarmos ao segundo mandamento que Jesus nos dá em Marcos 12,31 — «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» — é preciso que nos amemos o suficiente, não demasiado, para amarmos o outro. É preciso aceitarmos os nossos defeitos e lutar contra esse pecado capital que é o orgulho. E, para terminar, cito o Pe. Jacques Marin, padre da Mission de France: «O maior obstáculo ao amor não é o egoísmo, é o orgulho».

Rémi 2

Exercer a compaixão em relação ao outro não significa que detenhamos a solução para conduzir o outro à felicidade. Jesus exerceu a compaixão partilhando a nossa natureza humana e sofrendo por nós. Mas deixou a todos a liberdade de aderir ou não ao seu projecto divino. Impor ao outro a sua visão das coisas, mesmo com as melhores intenções, leva o cônjuge à asfixia em vez de lhe dar a respiração necessária para lhe permitir crescer.
Uma relação constrói-se através do crescimento de cada um. É preciso velar também por que essa compaixão não se transforme em espírito de sacrifício. Há que desconfiar do sacrifício. O sacrifício pode tornar-se numa competição com a própria pessoa, ocasião de focar o olhar em si próprio e não no outro, de se felicitar pelas suas proezas e de se lamentar pelos seus fracassos. Não esqueçamos as palavras de Jesus no evangelho de S. Mateus capítulo 9 versículo 13: «Prefiro a misericórdia ao sacrifício».

A compaixão, para ser portadora de sentido num casal, deve levar-nos a aceitar a
diferença entre homem e mulher. Temos de ter em conta essa diferença incompreensível e irredutível. Não podemos dar nada ao outro se nos fundirmos nele. Esta compaixão que nos toca nas entranhas e nos impele a ir até nos substituirmos ao outro para o ajudar no caminho pode ser mortífera. Assim como Jesus ressuscitado mostra a Maria Madalena que, a partir dali, ela deve comportar-se de maneira diferente, isto é, aceitar tomar distância, porque simultaneamente ele é o mesmo e passou a ser outro, também nós temos de aceitar essa diferença constitutiva do nosso ser. O homem e a mulher não têm a mesma psicologia, e temos de admitir que mesmo a nossa concepção do amor é diferente para um e para o outro. Devemos considerar as nossas diferenças como dons de Deus. O facto de nos reconhecermos e de nos aceitarmos reciprocamente com as nossas diferenças representa uma etapa essencial ao crescimento do nosso casal. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como são vividos, entre os sexos, a complementaridade, a necessidade mútua e o apoio recíproco». A compaixão que nos anima deve ter em conta esta alteridade. É preciso que continuemos a ser nós próprios se quisermos ser fonte de vida para o outro.

Jean-Philippe 4

Vimos que há diferentes expressões da compaixão e diferentes meios de adequar a expressão de cada um (experiência, diálogo, oração, dever de se sentar…). Um aspecto que não abordámos é a necessária distância entre nós para sermos compassivos. Dois exemplos para ilustrar essa distância: se um de nós cai à água, o outro pode também atirar-se borda fora, com o risco de se afogar também (o que eu teria tendência a fazer) ou pode, de cá de cima, dar conselhos, sem sequer pensar em atirar uma bóia. Em ambos os casos, a distância é má. A segunda imagem é tirada do profeta alemão Arthur Schopenhauer: é de noite, está frio, e, numa grande planície, estão porcos-espinhos. Então, como está frio, eles aproximam-se uns dos outros, e quando se aproximam, picam-se; isso causa-lhes dor e eles afastam-se; ao afastarem-se, têm frio e voltam a aproximar-se; ao aproximarem-se, picam-se e afastam-se, e assim por diante… Perdoem-me esta analogia divertida e satírica para o casal. Mas uma distância demasiado curta ou demasiado grande pode ser dolorosa.

De facto, se estivermos demasiado próximos, não temos distanciamento suficiente, deixamos de ver a situação no seu conjunto. É o que acontece com o fotógrafo. E já não nos pomos ao nível de quem queremos ajudar, mas no seu lugar. Isto lembra-me o exemplo de amigos muito próximos que tiveram sucessivamente problemas profissionais. Como eram demasiado unidos, arrastaram-se mutuamente na queda. Quando um tropeçava, também o
outro caía, e não se podiam ajudar um ao outro.

Não é melhor quando somos demasiado distantes. Aquele que não está em dificuldade pode olhar o outro de cima, numa posição de superioridade. Pode falar com condescendência. As suas palavras e os seus gestos não chegarão ao coração do outro e poderão agravar o seu isolamento e a sua dor. Se em casal vivemos uma provação comum estando demasiado distantes, as consequências são idênticas: também não poderemos exercer uma compaixão recíproca e útil.

Qual é a solução para adequar a distância? Certamente a comunicação sob todas as suas formas. E claramente o pedido de ajuda. Mas isso não é fácil, às vezes até é mesmo muito difícil. Porque para a pessoa que sofre, é preciso que ela tenha tomado consciência da situação, que a tenha analisado e a tenha aceitado. Depois, que ela tome essa atitude cheia de humildade de pedir ajuda. Mas, num casal como em qualquer outra relação, não é mais fácil propor ajuda do que pedi-la? Ir ao encontro da necessidade expressa e perguntar simplesmente: «queres que te ajude?». A adequação das palavras, do tom, da situação, permitirá respeitar o outro no seu sofrimento e na sua liberdade de responder a essa proposta de ajuda.

Françoise 3

Tender-se-ia a acreditar que o amor humano pode bastar para encher os nossos
corações. É uma ilusão. A compaixão é dificultada pela incompletude de todo o ser. A nossa condição humana não pode satisfazer o nosso desejo de infinito. Independentemente da compaixão de um pelo outro, não podemos atingir o absoluto simplesmente com os nossos meios. Não brinquemos aos milagreiros. «Sereis como deuses» sussurrou Satanás ao ouvido de Eva. A compaixão no casal é necessária para alimentar o amor humano, mas é apenas um prelúdio para nos conduzir a outro Amor, o único que oferece uma salvação verdadeira, para nos conduzir ao Completamente Outro que é Deus. Temos de abandonar a idealização de uma transparência impecável. Temos de respeitar o plano de Deus para o homem. Cada pessoa é uma criatura única querida e amada por Deus. O nosso amor assenta neste fundamento. Se queremos, porque temos compaixão por ele, participar do desenvolvimento do nosso cônjuge, devemos ter o cuidado de preservar a sua identidade profunda, de construir uma relação de sujeito a sujeito, numa distância razoável. Distanciarnos, diferenciar-nos do outro, para nos tornarmos nós próprios, mantendo-nos em comunhão um com o outro, e aceitar que o nosso amor não poderá alcançar a plenitude senão no amor em Deus, esse é o desafio do casal e o fundamento da sua indissolubilidade.
Conhecimento, comunicação, compaixão, esses meios para manter jovem e vivo o nosso amor, não devem, contudo, levar-nos a confundir comunhão com fusão. Isso seria negar a identidade de cada um. Cada um de nós é único aos olhos de Deus. Há que admitir que existe em cada um de nós algo que o subtrai à influência do outro. Trata-se da relação espiritual em nós, do que sobe para o Pai, da nossa relação pessoal com o Senhor. Só no respeito é que uma relação pode manter-se viva a longo prazo.

Usemos o nosso discernimento para fazer bom uso da compaixão; compete-lhe ajudarnos a ter em conta a nossa diferença, amolecer diante do outro, ainda que ele já não corresponda à imagem idealizada do tempo de namoro, ainda que ela não satisfaça as nossas expectativas; compete-lhe ajudar-nos a dar apoio ao outro na sua fraqueza, a continuar a olhá-lo dia após dia para descobrir o que continua a fazer dele o nosso amado.
Respeitemos o espaço íntimo do outro, onde Deus reside. O desejo de querer apropriar-se do outro na sua totalidade é a antítese do amor que Jesus nos ensina. De resto, o bom samaritano ir-se-á embora depois de ter feito o necessário pelo ferido; voltará a passar para pagar as despesas, mas não para saber notícias dele. A assistência que lhe presta para o ajudar a levantar-se novamente é limitada no tempo.

Rémi 3

Esse olhar do coração e essa compaixão pelo ser amado não poderá durar toda uma vida se não soubermos perdoar. O Pe. Caffarel dizia: «Saber perdoar é uma ciência necessária às pessoas casadas… Não há, de facto, amor que não alimente no seu seio, muitas vezes sem o saber, germens de morte. Se os cônjuges não empreenderem uma guerra de extermínio, hábil e perseverante, o seu amor não sobreviverá. Essa luta ultrapassa as forças humanas…
Mesmo para se amarem, acima de tudo para se amarem, o homem e a mulher precisam de Deus. Sem ele, não poderão proteger-se do mal, sem ele não vão saber durante muito tempo perdoar, um ao outro, as fraquezas do seu amor».

O perdão impõe reconhecer a verdade sem aparências enganadoras e olhá-la de frente, para ultrapassar a dor e dar lugar a outra coisa. O Pe. François Varillon, jesuíta, dizia a este propósito: «Poderia ser este o verdadeiro poder do perdão: não ser uma passagem de esponja nem uma barrela, mas uma re-criação». O desejo de vingança aprisiona-nos, o desejo de perdão liberta-nos. Qualquer reconciliação verdadeira exige de um e do outro — de um para pedir perdão, do outro para consentir no perdão — a renovação do amor que acarretará e incentivará um novo começo. O milagre do casal reside nesse mistério que faz com que cada cônjuge possa, em momentos diferentes, ter a iniciativa de reatar o diálogo e de ser aquele que inicia a reconciliação.

É nesses momentos que o olhar que temos sobre o nosso cônjuge e a compaixão que daí resulta ganharão todo o seu sentido. Temos de ir beber na fonte da misericórdia divina para, por nossa vez, podermos perdoar estando plenamente conscientes de que temos a nossa quota-parte de responsabilidade: «Quem de vós estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra» (Jo 8,7). Não se pode dar o perdão a partir de uma posição de força. O perdão é o dom do amor gratuito por excelência.

Que o Senhor nos acompanhe neste caminho de compaixão.

Postado por: http://www.brasilia2012.com.br/ens/index-pt.php?page=detalhes-dia-a-dia&id=45

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