English Spain Français Deutsch Italian

domingo, 15 de abril de 2012

O DISCURSO DE CHANTILLY (PADRE HENRY CAFFAREL)

EQUIPAS DE NOSSA SENHORA
O CARISMA FUNDADOR
DAS ENS

Junho 2006

INTRODUÇÃO:
1 - Qual o carisma fundador das ENS?
2 - O que foi bem visto, bem compreendido e bem assimilado do carisma fundador
3 - O que foi menos bem visto do carisma fundador
4 - O que não podia ter sido visto do carisma fundador


INTRODUÇÃO
Vamos recolher-nos durante um instante? Pois o assunto é importante. Vamos tentar penetrar um pouco mais nos pensamentos do Senhor; por isso façamos alguns segundos de oração.
1 - Qual o carisma fundador das ENS?
Para melhor me fazer compreender, permitam-me partir duma recordação. Há cerca de vinte anos, encontrava-me em Roma, na Comissão dos Religiosos, organismo que supervisiona, orienta e dirige as congregações e ordens religiosas de toda a Igreja. Conversava com um dos eclesiásticos dessa Comissão e ele disse-me: «Todos os anos temos uns setecentos, oitocentos, mil pedidos de aprovação para a fundação de novas ordens». Fiquei surpreendido com esse número e então esse religioso, certamente um pouco misógino, acrescentou: «Para falar com franqueza, a maior parte desses pedidos provém de mulheres. Elas não estão muito dispostas a ser noviças numa ordem antiga, e então fundam uma ordem nova para serem logo superioras.» E esclareceu-me que tais pedidos podem ser classificados em três categorias:
• a dos que apresentam motivações ou ideias inteiramente discutíveis, que são logo eliminados;
• a dos que têm boas ideias, ideias muito edificantes para fundar uma nova congregação, que são postos em estudo e provavelmente virão a ser autorizados;
• e uma terceira categoria, em que se sente haver provavelmente, um carisma fundador já no início.
Mas, a bem dizer, nunca isso é logo percebido, e será o futuro que decidirá.
Que se deve entender, então, por «carisma fundador»? É coisa muito diferente de uma boa ideia, de uma ideia edificante; é uma inspiração do Espírito Santo, que será como um dinamismo a conduzir a instituição durante todo o seu desenvolvimento e lhe permitirá cumprir a sua missão.
Há grupos que no início têm um carisma fundador, mas que, com os anos, entram em decadência. A história da Igreja apresenta muitos exemplos disso; e a razão é que os sucessores não foram suficientemente fiéis ao carisma fundador pela reflexão e pela oração; daí o seu declínio.
Aquele homem da Congregação dos Religiosos acrescentava: «Foi exactamente por isso que o
Concílio pediu, com muita insistência, às ordens religiosas e às congregações que fizessem um
«aggiornamento». Isto é, que procurassem uma renovação e um renascimento, a partir da reflexão e da pesquisa sobre as necessidades dos seus membros, de molde a corresponderem às exigências do tempo actual e futuro.» Há três elementos que se devem considerar, quando se empreende esse «aggiornamento», como vocês o fazem depois de 40 anos:
Primeiro, voltar à nascente, porque às vezes está assoreada. Essa nascente é o que eu chamo de carisma fundador. Há ordens religiosas que se bifurcam no meio do caminho. Penso em certa ordem, que conheço bem. No começo era uma ordem de mulheres, fundada para a instrução de crianças pobres. Mas actualmente tem apenas colégios para certa elite social. É evidente que essa elite social fornece mais vocações do que as crianças pobres ... Aí está um tipo de infidelidade ao carisma fundador. Portanto, voltar à fonte.
Em segundo lugar, terem conta as necessidades e os valores do período em que nos encontramos.
Cada período traz para a Igreja e para a Sociedade novos valores; valores positivos e valores negativos. É preciso ter em conta os valores positivos e as necessidades dos indivíduos. E verificar em que medida esses valores, que pensamos adoptar, se situam na linha do carisma fundador.
Há alguns anos, sucedeu que certos trapistas pediram ao seu superior permissão para se tornarem padres-operários. O superior reflectiu e disse-lhes que isso não cabia no carisma fundador. O que não queria dizer que menosprezasse os padres-operários, mas que os trapistas tinham outra vocação.
Terceiro: voltar à fonte, acolher as necessidades e os valores actuais, na medida em que são assimiláveis, e depois encarar uma prospectiva. Em que direcção se deve incitar o Movimento a avançar, sempre na fidelidade ao carisma fundador? Essa noção de fidelidade ao carisma fundador é capital, mas é preciso não confundir ser fiel com ser fixo.
Pois bem, atrevo-me a crer hoje, após quarenta anos, que na origem das ENS houve um carisma fundador. Mas, atenção! Não me tomo por inspirado, nem por profeta, nem por santo.
No começo não se suspeitava qual seria o futuro. Não se dizia: «O Espírito Santo levou-me a fazer isto». É só hoje, após quarenta anos, diante do desenvolvimento das ENS, que eu penso: em 1939, com os quatro primeiros casais, houve alguma coisa que não era apenas uma boa ideia; alguma coisa mais do que o simples entusiasmo; aquele encontro não foi um encontro fortuito; a Providência e o Espírito Santo ali estavam por alguma razão. Agora dou graças ao Senhor, mas ao mesmo tempo faço-me uma pergunta. E é disso que lhes vou falar.
O que foi bem compreendido do carisma fundador, no decurso destes anos? O que, nesse período, não foi bem compreendido? O que era impossível compreender, e que se compreende melhor na actual conjuntura?
Quando se propõe um «aggiornamento» como vocês pretendem, é preciso respeitar uma grande lei. Aliás, não somente nos momentos decisivos, mas em todo o decurso da sua evolução. Por um lado, quanto aos dirigentes, é preciso que estejam sempre muito em contacto com as bases. E por isso que, quando uma ordem religiosa faz um «aggiornamento», se consultam todos os membros da ordem. É muitas vezes na base que o carisma fundador foi conservado com uma certa pureza. Mas, por outro lado, é preciso estar muito em contacto com a base para lhe transmitir o que nós compreendemos, o que a cabeça compreende.É sempre muito grave quando há uma distância entre a cabeça e os membros. É um problema muito difícil, de que me apercebi nas ENS. Houve um tempo em que eu estava todos os quinze dias, ou todos os meses, em contacto com todos os casais responsáveis. E evidentemente era um contacto muito directo. Mas depois, pouco a pouco, toda uma hierarquia foi organizada e, nestas condições, o contacto é muito mais difícil de se estabelecer. Mas é preciso procurá-lo, custe o que custar. Agora, então, a primeira parte que lhes anunciei:
2 - O que é que foi bem visto, bem compreeendido e bem assimilado do carisma fundador?
Não posso deixar de lhes fazer um relato daqueles inícios. Era a semente, na qual estava todo esse dinamismo que impulsionou o Movimento. Um dia, em Março de 1939, uma mulher casada veio falar comigo, perguntando-me se queria ajudá-la a caminhar na vida espiritual. Aceitei, é claro. Quinze dias depois, pediu-me para receber o marido, ao que também acedi. Um mês depois, ambos me perguntaram se aceitava ter uma reunião com mais três casais amigos, que se interrogavam sobre a maneira de progredirem na vida cristã. Eram quatro jovens casais de menos de trinta anos. Hesitei, porque tinha passado por uma cruel aventura. Numa abadia, tinha acompanhado um grupo de escoteiros; houve um debate, e eles fizeram-me a seguinte pergunta: «Padre, será que nos poderia falar sobre o amor?». Então, confiante nos meus conhecimentos de psicologia escolástica, disse-lhes: «Amar é querer o bem para alguém». Foi uma gritaria: «Querer o bem? O senhor não compreende nada disso!» Tive de bater em retirada, dizendo-lhes que a questão merecia ser vista de diversos ângulos. O que não impediu que ficasse um pouco humilhado por esta pequena aventura. Então, quando me vi confrontado com essa proposta de casais, faltou-me a coragem. Mas, apesar disso, fui. Eles eram muito representativos dos jovens casais daqueles anos.
Tinham realizado uma dupla reconciliação. Em primeiro lugar, uma reconciliação entre o amor e o casamento. Nessa época e em anos precedentes, repetia-se muitas vezes uma frase célebre: «O amor é uma coisa, o casamento é outra». Creio que foi Maurois ou Mauriac quem escreveu essa frase. Pois bem, esses jovens casais, quase todos saídos do escotismo, tinham efectuado essa reconciliação: amor e casamento eram uma só e mesma coisa. Nenhum tinha tido aventuras sentimentais anteriores, o seu primeiro amor fora seu o cônjuge. E o seu casamento era um alegre amor. E tinham efectuado uma segunda reconciliação: religião e amor de Cristo é tudo uma coisa só. Não sei se vocês podem imaginar como era naquela época e alguns anos antes, por exemplo, quando eu estava no Secundário: não se falava no amor de Deus. Na França, ainda estávamos muito influenciados pelo jansenismo, e seria apontado a dedo um padre que falasse do amor de Deus. Tive a sorte de encontrar um director espiritual que me falou do amor de Cristo. Mas, nos meios católicos, havia toda uma reconciliação a ser feita; e aqueles quatro casais tinham feito essa reconciliação.
De modo que tinha na minha frente casais habitados por dois amores: o amor do cônjuge e o amor deCristo. À primeira vista, pode-se pensar que tanto o amor conjugal como o amor de Cristo são amores totalitários, intransigentes. Ora, eles mesmos faziam uma experiência curiosa: esses dois amores, tão absolutos, conciliavam-se perfeitamente na vida espiritual, embora lhes custasse compreender como se operava essa conciliação do amor do cônjuge e do amor de Cristo. E era por isso que tantos ansiavam em descobrir: como progredir na santidade com esses dois amores no coração. A primeira reunião que tivemos foi muito alegre, muito cheia de ambições, a partir dessa grande alegria que eles tinham de se amar e de amar a Cristo. Apresentaram-me trinta e seis perguntas, e imediatamente perdi as minhas apreensões. Eu próprio fiquei admirado por me sentir tão à vontade. E então compreendi por quê: havia dez ou quinze anos que eu vivia com Cristo uma relação de amor; e, diante desses casais a falarem-me do seu amor, descobri que se repetiam na vida do casal as mesmas leis que eu tinha descoberto na minha relação com Cristo. As leis do amor são as mesmas em toda a parte. E foi isso que imediatamente me conquistou e entusiasmou. íamos, portanto, poder ajudar-nos uns aos outros: eles iam trazer-me a realidade concreta que viviam, e eu levar-lhes-ia algumas noções de espiritualidade que possuía. Quantas vezes disse a mim mesmo que, se em vez de encontrar esses quatro casais, tivesse começado o meu ministério numa paróquia, fazendo a descoberta do casamento no confessionário, não teria de modo nenhum evoluído da mesma maneira! Teria conhecido as dificuldades morais, teria conhecido as dificuldades psicológicas, teria tido uma ideia muito mais sombria da união do homem e da mulher. Felizmente, comecei a interessar-me pelo casamento com esses quatro casais.
A outra ideia, pois, que tivemos desde o princípio foi descobrir o pensamento de Deus sobre o casal e sobre todas as suas realidades. E penso que apreendemos com isso um dos elementos fundamentais do carisma fundador. Tanto que fizemos uma lista de todos os elementos que compõem a vida do casal e a vida da família, e resolvemos procurar sucessivamente a vontade de Deus sobre cada um deles. Não suspeitávamos que, quatro meses depois, haveria a declaração de guerra, e que os quatro casais iam dispersar-se, e eu próprio ia partir para o exército.
A segunda orientação: nenhum deles tinha dificuldade de pensar que a sua vocação era a santidade, que lhes parecia o desenvolvimento do amor, a realização plena tanto do amor conjugal como do amor de Cristo. E a reflexão fê-los logo descobrir, duma maneira completamente nova, o sacramento do matrimónio. Não como uma simples formalidade, mas como uma prodigiosa fonte de graça, em que Cristo vem salvar o amor, enfermo desde o pecado original, trazendo-lhe auxílios e graças enormes.
Outra coisa pareceu-nos muito importante. Proveio duma mulher, durante uma reunião, quando estávamos a rezar, porque em cada uma dessas reuniões rezávamos espontaneamente; era uma necessidade, sobretudo a necessidade de louvar a Deus, por aquilo que aqueles casais viviam e por aquilo que descobriam do pensamento de Deus. Estavam encantados ao descobrir que Deus tinha uma tão maravilhosa ideia do amor humano ... Pois bem, um dia, durante a oração, uma das mulheres dirigiu-se a Deus nestes termos: «Senhor, nós te agradecemos pelo casamento dos nossos dois sacramentos: o sacerdócio e o matrimónio». Penso que essa reflexão tinha grande alcance, e que faz parte desse dinamismo do começo: a aliança do sacerdócio, que representa a Igreja, o pensamento da Igreja, com os casais que trazem as suas riquezas, as suas necessidades, os seus problemas, e a necessidade de diálogo, para que o ensinamento da Igreja não fique desligado das realidades concretas, mas se esforce por corresponder, não só às necessidades, mas também às aspirações dos casais. Durante toda a vida das ENS fizemos muita questão da união dos dois sacramentos. Fizemos quatro reuniões. E pronto, foi tudo. Mas, diria que foi o bastante para decidir da minha vocação. Estava muito entusiasmado a partir dessas reuniões. Regressei em Julho de 1940, depois de ter fugido por três vezes aos alemães; fui nomeado pároco duma paróquia e logo deparei com outros casais a quem contei a experiência que tínhamos tido, e que me pediram para fazer também com eles reuniões de casais.
O clima era muito diferente. Havia a guerra, as restrições, o sofrimento, a ameaça e, por vezes, a visita da Gestapo a um ou outro desses casais, sendo o marido despachado para um campo de deportados ... Conservamos o entusiasmo de antes da guerra, porque o seu fundamento era o pensamento de Deus sobre o matrimónio; mas, ao mesmo tempo, tomamos consciência que a vida humana não é um caminho fácil. Então, com muita vontade e tenacidade, tentámos aprofundar a doutrina do matrimónio, do pensamento da Igreja sobre todos os aspectos do matrimónio. Interrogamo-nos sobre a forma de viver cristãmente as realidades conjugais e familiares. E depois alargamos a nossa pergunta: «Como viver, no estado de casados, todas as exigências da vida cristã?» - creio que é o mais exacto. E principalmente pareceu-nos ser necessário, custasse o que custasse, elaborar uma espiritualidade para cristãos casados, porque era evidente que o ensinamento corrente da Igreja e dos padres, para os homens e as mulheres que queriam santificar-se, era uma espiritualidade elaborada por monges e religiosos. Havia, portanto, uma descoberta a ser feita, pois, de contrário, estaríamos condenados a um impasse: os casais jamais iriam longe no caminho da santidade se continuassem presos a uma espiritualidade de monges. Por isso, durante esses anos da ocupação, tivemos o primeiro aprofundamento, um aprofundamento doutrinal, tendo a impressão que nunca acabaríamos de aprofundar o pensamento de Deus sobre o matrimónio.
O segundo aprofundamento foi o da amizade, nessas circunstâncias tão difíceis, por vezes dramáticas, a que acabei de aludir. Compreendemos que aquelas reuniões de casais não tinham por fim simplesmente aprofundar uma doutrina, mas permitiam também criar laços de amizade, em vista de uma entreajuda, e com isso esses grupos de casais compreenderam que um aspecto de sua vocação era a entreajuda. A entreajuda e a oração. Da primeira vez que um dos maridos foi levado pela Gestapo, recordo-me que nessa tarde imediatamente telefonamos a todos os outros casais, e decidimos ir para a casa daquele casal passar a noite em oração. As mulheres tinham leitos e divãs, e nós, os homens, ficámos na sala de estar, deitados debaixo de cobertores. E revezamo-nos durante toda a noite em oração na casa daquele casal, cujo marido, aliás, regressou da deportação. Essa necessidade da oração revelou-se-nos como extremamente forte, e foi a partir de então que não pude conceber uma reunião de casais sem oração. Passou-se isto de 1940 a 1945. Vários prisioneiros e deportados regressaram, outros infelizmente não voltaram. Os grupos multiplicaram-se, tornaram-se moda. Alguns vinham com a preocupação de aprofundar o pensamento de Deus; mas havia também quem viesse simplesmente para encontrar amizades humanas; e, depois, talvez também por snobismo.
Percebi que pesava sobre esses grupos uma ameaça de desmoronamento: que em vez de ter um ideal muito elevado, se contentassem com qualquer coisa de fácil. Era uma viragem decisiva. Foi nesse momento que fui levado a reflectir, a interrogar-me, como é que os religiosos caminham durante toda a sua vida para a santidade sem recaída, sem desalento, sem abandono? Porque têm uma regra. E veio-me ao espírito esta ideia, em que me detive e de que falei com os outros: «Se queríamos evitar uma derrocada, ou, pelo menos, a procura de caminhos mais fáceis, era preciso que tivéssemos uma regra.» Foi em 1945, 1946 e 1947 que pensámos na «Carta». Logo, porém, tivemos consciência que, se fizéssemos isso, arriscávamos perder uma grande quantidade de casais! E, de facto, em 8 de Dezembro de 1947, na cripta da Igreja de Santo Agostinho, em Paris, para onde convocáramos todos os casais da região - correra o boato que se lhes ia propor alguma coisa de exigente - um terço dos casais abandonou-nos. Não aceitaram a lei da exigência. Ficamos abalados, perguntando-nos se não teríamos sido excessivamente ambiciosos. Mas afinal, nos anos seguintes, descobrimos que continuavam firmes justamente os grupos de casais que tinham aceitado exigências E houve a explosão, a expansão inesperada pelos quatro cantos do mundo. Houve as grandes concentrações, nomeadamente os nossos encontros de Lourdes e de Roma.
Lembro-me muito bem que, em 1959, se levantou a questão: «São as Equipas de Nossa Senhora um movimento de iniciação à espiritualidade conjugal e familiar? Se assim é, se são movimento de iniciação, devemos deixá-lo logo que estejamos iniciados. Uma criança não fica toda a vida no jardim-de-infância.» E, com efeito, sentíamos o perigo de as ENS se tornarem jardins-de-infância para adultos. Mas, então, o nosso Movimento não seria antes um Movimento de perfeição? A resposta dada no encontro de Roma foi que é preciso que as ENS sejam, ao mesmo tempo, Movimento de iniciação e Movimento de perfeição. É mais simples: é preciso que se inventem regras que permitam aos seus membros progredir na caminhada.
É isso. Será necessário resumir os elementos do carisma fundador, tal como se foram revelando no decurso destes anos?
Pois vou fazê-lo. E vejo sete:
- O casamento é uma obra de Deus, a obra-prima de Deus.
- O casamento tem uma alma, que é o amor. E esquecer o amor é condenar o matrimónio.
- Os homens e as mulheres não podem ser fiéis ao amor sem o auxílio de Cristo. Por isso ele inventou o sacramento do matrimónio, que é preciso aprofundar.
- Os cristãos casados, tal como os outros, como os monges, são chamados à santidade. Essa foi uma descoberta bastante original, porque ainda não tinha havido o Concílio, e foi aí que se insistiu muito sobre vocação dos leigos à santidade.
- A vida conjugal comporta grandes riquezas e também grandes exigências.
- É necessário e indispensável elaborar uma espiritualidade do casal. Não pode ser a espiritualidade do celibatário ou do monge.
- Não se pode viver isso senão com a ajuda de um Movimento, que oriente os pensamentos e enquadre a vida.
Isto o que foi bem assimilado do carisma fundador.
3 - O que foi menos bem visto do carisma fundador
Agora quero dizer-vos o que, na minha opinião, foi menos bem visto.
Em primeiro lugar: entusiasmado com esses jovens casais tão ricos de amor, eu tinha pensado que o amor fosse o grande factor de perfeição, e que era preciso dizer-lhes: «Sejam fiéis ao amor!» Não me tinha lembrado que Cristo oferece dois meios aos que querem tender para a perfeição: o amor e a abnegação. Deus quer perfeição do cristão, quer a perfeição do casal, quer que o ser humano se torne perfeito, e essa perfeição só poderá ser obtida pela fidelidade ao amor e à abnegação; ou seja: ao dom de si e ao esquecimento de si.
O amor e a abnegação são as duas faces da medalha. Não há amor sem abnegação, e uma abnegação que não seja uma abnegação de amor é uma abnegação impossível de se praticar. Reflectindo sobre isso, compreendi que o Senhor inventou o matrimónio como grande meio de desenvolver o amor, e como grande meio de favorecer a abnegação.
Compreendi que a abnegação não deve estar ao lado do amor, mas que a verdadeira abnegação é precisamente impor-nos o compromisso de nunca deixar de amar, de viver sempre na atitude do «para ti» e nunca na atitude do «para mim». Para caminharmos nas estradas da terra, o Senhor deu-nos duas pernas. Para caminharmos nas estradas da santidade, o Senhor deu-nos dois meios: o amor e a abnegação.
Apercebi-me, então, que eu tinha incitado os casais a caminhar com apenas um pé para chegarem ao termo. E não se vai longe caminhando com apenas um pé, sendo necessário avançar com os dois pés, um após outro. E quanto a isto não estou muito certo de que tenha entrado bem no espírito das ENS.
O matrimónio é, pois, um grande meio de amor e um grande meio de abnegação. Grande meio de abnegação, precisamente para permitir o amor. Lembro-me do seguinte episódio: depois de uma conferência sobre a espiritualidade conjugal, uma mulher, que devia ter uns sessenta anos, veio ter comigo e disse-me: «Muito obrigada, Padre. Que pena não termos conhecido tudo isso,, meu marido e eu, quando nos casamos!» (Curvei-me com deferência). «Vou dizer-lhe uma coisa». (Esperei uma confidência, mostrei-me respeitoso). «Posso dizer-lhe tudo. Pois bem, o coronel (quando falava do marido, era sempre «o coronel», como se só houvesse um coronel na terra ) quando o desposei, estava já muito, muito avançado na vida espiritual. Ora, posso dizer-lhe o que sucedeu: ele fazia parte da ordem terceira franciscana e ... (a confidência saía com certa dificuldade) trazia um cilício. Ora, devo acrescentar que era a mim que esse cilício arranhava. Tive vontade de lhe dizer (mas contive essa pequena maldade): “Mas ele deveria ter compreeendido que uma mulher é suficiente e que não tinha necessidade de acrescenar um cilício” ...
Moral da história: o verdadeiro meio de morrer para si mesmo, para este velho egoísmo que incessantemente nos atormenta, é amar, amar de manhã até à noite, e nunca se deixar cair no «para mim»; e ficar sempre na atitude do «para ti». O Senhor inventou como o melhor meio para nos fazer progredir no amor e na abnegação o matrimónio. Os religiosos têm outra coisa os casados têm o matrimónio Segundo ponto que não foi visto de maneira suficientemente clara: a sexualidade no matrimónio. Não a desconhecíamos, e esses casais jovens tinham até muita facilidade de falar nesse assunto de modo descontraído. Mas, apesar disso, não aprofundamos o problema, não aprofundamos o sentido humano e o sentido cristão da sexualidade. Não ajudamos suficientemente os membros das ENS a alcançar a perfeição humana da sexualidade, a perfeição cristã da sexualidade.
Senti isso de tal maneira que, quando projectámos a peregrinação a Roma, em 1970, tendo o Papa perguntado sobre que tema desejaríamos que ele nos falasse, propus que nos fizesse um discurso sobre o sentido humano e cristão da sexualidade. Até preparámos uma nota de trinta páginas sobre o assunto, que foi submetida a Paulo VI. Mas ele mandou--me dizer: «A questão ainda não está amadurecida. Não posso aceder ao seu desejo.» E, de certa forma, não o lamentamos, porque nos fez esse admirável discurso que todos conhecemos. Mas, para facilitar o trabalho de Paulo VI, tínhamos lançado um grande inquérito, que comportava umas cem ou cento e cinquenta perguntas sobre a vida sexual de cada um dos membros das Equipas, com a minha garantia expressa que o anonimato seria rigorosamente respeitado, mas pedindo-lhes que respondessem com toda a franqueza. E recebemos mais de meio milhar de respostas a esse inquérito. Simplesmente, como o Papa renunciou a esse assunto, tal inquérito ficou a dormir durante todos esses anos. E foi somente no ano passado que eu disse a mim mesmo: «Não é possível deixá-lo a dormir», e comecei a examiná-lo. Já li, creio eu, umas oitocentas respostas, e respostas que têm entre vinte e cinquenta páginas. Não é um trabalho pequeno. Mas tem sido para mim uma verdadeira descoberta. Eu não era nenhum jovem inocente, já tinha recebido muitas confidências de muitos casais, mas não tinha uma vista de conjunto da vida sexual dos casais, dessa categoria de casais das Equipas. Fiquei abalado e continuo muito impressionado. E espero que, se Deus me der vida, poderei expor num livro as minhas conclusões.
A primeira coisa que me impressionou fortemente foi o mutismo dos pais a tal respeito. Uma negligência de 95%. Vocês irão dizer-me: «Essas respostas são de 1969; não são de casais de 1987.» Duvido, porém, que haja actualmente um progresso muito grande nesse domínio. Portanto, mutismo dos pais, o que quer dizer dificuldade da maior parte dos filhos, rapazes e moças, dificuldade de que eles não ousam falar, e consequentemente sentimento de culpa, muitas vezes sentimento neurótico de culpa. Impressionam-me essas perturbações durante a infância, essas consciências perturbadas durante anos, o que quer dizer noivados mal vividos, porque os pais não dizem nada e os padres não dizem muito mais. Muitas vezes, um grande número de noivados são mal vividos, porque os noivos não sabem exactamente, como eles dizem, o que é permitido e o que é proibido. Começo do casamento muitas vezes catastrófico, a um ponto que eu nem imaginava, porque não se fala disso. A harmonia sexual raramente alcançada no começo. Muitas vezes é preciso esperar dois ou três anos, por vezes dez, quinze anos e, em muitos casos, jamais é realizada. E esse inquérito revelou-me até que ponto ela é de importância capital. Desse inquérito igualmente verifiquei que o sentido cristão da sexualidade é quase totalmente ignorado pelos casais das Equipas. Não chegam a 2% os que dão uma resposta verdadeiramente rica a estas perguntas: «Qual é o sentido cristão da sexualidade? Como viveis cristãmente a vossa sexualidade?»
Outra coisa que resulta de tudo isto é que a maioria dos casais que responderam (agora isso está mudado) tinha grande preocupação em respeitar o que eles chamavam de «a lei da Igreja». Conseguiam-no dificilmente, frequentes vezes com muita impaciência e talvez revolta. Mas não se preocupavam com a qualidade humana da relação sexual. E compreendi, ao ler, estudar e meditar sobre estas respostas, que não pode haver uma verdadeira moralidade da sexualidade se não houver uma qualidade da sexualidade. E é aí que reconheço que os homens da Igreja, quanto a esse ponto, não são fiéis à sua missão. Prega-se a moralidade no matrimónio, diz-se o que é permitido e o que é proibido, mas não se oferece ao cristão casado um único livro (não existe! ... digam-me se conhecem algum! ...), não se oferece um único livro sobre a maneira de (desculpem a expressão, que antes eu detestava, que é um pouco vulgar, mas que me parece importante) de bem «fazer o amor», de bem viver a relação sexual. E então os casais cristãos, como os outros, vivem uma sexualidade de bárbaros. Não tenho tempo de lhes dizer agora como depois evolui, graças às confidências e averiguações que fiz junto de certos casais. O que lhes digo, como coisa que não foi feita e que se impõe, é que é absolutamente preciso guiar os casais para a perfeição humana e cristã da relação sexual. Tinha também, sem dúvida, minimizado o ensinamento da Igreja sobre o pecado original.
Terceiro aspecto do carisma fundador que, segundo me parece, foi insuficientemente compreendido, mas que na verdade só no decurso dos anos se podia compreender: a missão das ENS.
Porque as ENS têm uma vocação: a sua vocação é ajudar os casais a santificarem-se. Mas têm tambémuma missão na Igreja. É necessário ter sempre presentes estes dois aspectos: vocação e missão. E agora, após quarenta anos, nós compreendemo-lo melhor. E ouso dizer-lhes uma coisa que pode parecer um convite ao orgulho, mas que o não é: o aparecimento e o desenvolvimento das ENS na Igreja é um acontecimento muito importante da Igreja.
Antes de 1939 não havia na Igreja agrupamentos de casais. Havia inúmeros agrupamentos de indivíduos, mas agrupamentos de casais não havia. Era uma coisa completamente insólita. E não os podia haver precisamente porque os casais não tinham feito essa experiência de que acabo de lhes falar. Um exemplo: com o primeiro grupo que eu animava, decidimos fazer um retiro. Fui bater à porta das casas de retiros dos padres jesuítas: -«Podemos fazer um retiro na sua casa?» - «E claro!» Mas depois, reconsiderando: «Mas haverá senhoras?» - «Sim senhor.» - «Vade retro Satanás.» Eles nunca tinham aceitado uma mulher nas casas dos jesuítas. Vou ter então com as freiras do Cenáculo. - «Mas haverá homens?... Impossível!»
Esta pequena história ilustra bem a novidade de um movimento de casais. E foi então que descobrimos um aspecto do carisma fundador, que eu tinha demasiadamente ignorado. Afinal, na Igreja, nada se via além do indivíduo. Reagia-se como se o ponto mais alto da criação, do grande empreendimento de Deus ao criar o universo, o supremo ponto de perfeição da obra de Deus, fosse o indivíduo. Esqueciam-se por completo estas linhas do Genesis: «Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, criou-o homem e mulher e eles serão uma só carne».
O vértice da pirâmide não é o indivíduo, mas sim o casal. E isso é algo de muito novo. E o Movimento devia obrigar a Igreja a rever um pouco a sua antropologia e a sua concepção das coisas. São João Crisóstomo, Padre da Igreja - que, aliás, não foi conselheiro das ENS! - escreveu esta pequena frase: «Quem não é casado não é um, é metade de um». Mas isso vai muito longe. Homem e mulher possuem a mesma natureza humana; portanto, são iguais; mas possuem-na em modalidades diversas.,Portanto, são complementares e, quando se unem, formam essa entidade que é o casal. O casal é obra de Deus.
Tive essa intuição com os quatro primeiros casais, mas não tinha analisado o assunto: insistia mais sobre o amor, sobre o casamento. Ora, penso que na Igreja não devemos contentar-nos em falar de casamento e de amor; é preciso falar de casal. Na hora actual isso é muito mais necessário, pois chegas-se a negar a diferença dos sexos. Foi publicado, ainda há pouco, um livro da esposa dum antigo Ministro da Justiça francês sobre a inter-mutabilidade do homem e da mulher. Essa é uma das grandes catástrofes do nosso mundo do século XX prestes a terminar. Porque a sexualidade foi banalizada, por isso a complementaridade émenosprezada, e chegas-se a esta dissolução da sociedade: em quinze anos, os casamentos em França passaram de 450.000 para 225.000, aproximadamente.
Atenção, portanto, à maneira como falamos das ENS. Antigamente falava-se de Movimento de famílias (ménages): essa palavra já não me agrada; falava-se de Movimento de lares (foyers): é um pouco vago; trata-se na verdade de um Movimento de casais (couples) e essa é a grande afirmação que devemos levar para a Igreja.
Um segundo aspecto da missão das ENS: antes da aparição das ENS, antes deste acontecimento que já lhes apontei como revolucionário, era ensino corrente que quem queria ser perfeito devia renunciar ao casamento e entrar na vida religiosa. Foi o que me disse um padre, durante um retiro no final do meu curso secundário. E eu, na minha simplicidade, disse--lhe: «Mas então, se todos o escutassem não haveria humanidade, já que todos estariam na vida religiosa ou no sacerdócio ...» Na minha ingenuidade dos meus quinze anos, eu acreditava que todos queriam ser perfeitos! E o que dizem então as ENS? Que é possível a santificação no estado do casamento e pelo estado do casamento. Não insisto nisso, porque o sabeis muito bem. Mas é uma nova concepção da santidade, que não é corrente na Igreja.
Terceira revolução, se assim posso dizer: antes das ENS (e ainda resta algo disso na Igreja), havia bastante maniqueísmo: é preciso libertar--se ao máximo da matéria e da carne. Não se estava longe de pensar, como Platão, que o corpo é o sepulcro da alma. Pois bem, com as ENS afirma-se na Igreja que a sexualidade é um factor de santificação, desde que seja assumida e evangelizada; e que o prazer é uma realidade santa, que faz parte do plano de Deus e não deve ser posto sob suspeita, como entendiam essas tristes espiritualidades que tão frequentemente se podiam encontrar. E isso leva-nos muito mais longe: em toda a nossa vida neste mundo, os valores naturais não podem ser desprezados; é preciso assumi-los, entre eles a sexualidade que é um valor típico. Actualmente é muito importante compreender isso, para impedir que a sexualidade perca o seu sentido, porque actualmente ela vive uma situação dramática, e para a salvar do erotismo.

Quarta revolução: cantava-se na minha infância: «Só tenho uma alma, que é preciso salvar». A santidade era um assunto individual. Ninguém se santificava em lugar do outro. Cada um se salvava a si mesmo. Ora, as ENS dizem: a entreajuda é coisa querida por Deus para caminharmos na santidade. Não nos salvamos sozinhos. Aí está uma novidade: a entreajuda entre cônjuges e a entreajuda entre casais do Movimento.
Quinta revolução. Note-se que uso a palavra «revolução» com um sorriso nos lábios: não pretendo que nada disso tenha sido vislumbrado antes, mas de qualquer modo é muito característico. Antes, a santidade era muitas vezes concebida como «cultivo da beleza espiritual». Mas, quando falamos de santidade das pessoas casadas, recordamo-nos das palavras de Cristo: «a árvore será julgada pelos seus frutos»; não por sua beleza, mas por seus frutos. Quando Deus nos apresenta Abraão, que ele quer transformar em pai de todos os santos, mostra-lhe as estrelas do céu e diz: «é essa a tua posteridade». «A tua santidade será a tua fecundidade».
Pois bem, isso é algo de bastante novo na Igreja. Não se trata de cultivar a nossa própria beleza, mas de participar dessa evolução da criação, que tende para um objectivo final. É uma ideia muito contemporânea esta ideia da evolução do mundo e esta necessidade de contribuir para a mesma. E o casamento faz compreender muito bem isso: trata-se de transmitir a vida, e não de simplesmente polir a nossa perfeição pessoal.
São estes os cinco aspectos, que não tinham sido percebidos convenientemente: resumindo .... Já não encontro meus papéis; paciência, vocês lembram-se! (Está assim na transcrição original da palestra.)
Há uma coisa que lamento, mas, aqui para nós, não acuso ninguém, muito longe disso. Lamento que as ENS, nesta perspectiva da sua missão, não tenham acompanhado a caminhada dos cursos de preparação para o matrimónio. Eles tiveram sua origem nas ENS mas, muitas vezes, tornaram-se pouco cristãos. Não acho que as ENS devessem ter assumido a direcção da preparação para o matrimónio, mas que deveriam ter os seus próprios centros de preparação para o casamento, centros que servissem de ponto de referência para os outros; a partir justamente da espiritualidade que elas tinham descoberto. E lamento também que os conselheiros conjugais, muitos dos quais saídos das ENS, não tenham sido formados e apoiados pelas Equipas. Por isso é que se apoiam mais na psicologia de Freud do que na espiritualidade conjugal e familiar. Gostaria que as ENS contassem com conselheiros conjugais que, sem nenhuma ideia de monopólio, levassem em conta a linha do carisma fundador.
4 - O que não podia ter sido visto do carisma fundador
Disse-lhes até aqui o que foi bem visto e o que foi menos visto. Dir-lhes-ei agora o que não podia ter sido visto, e que o pode ser apenas na actual conjuntura.
Em primeiro lugar, actualmente é preciso partir de mais baixo. Formam-se agora muitos casais que não tiveram uma verdadeira catequese, ignoram muito da vida cristã e satisfazem muito mal as suas exigências. Conheço actualmente algumas Equipas de Nossa Senhora onde o esforço é conseguir que todos os casais vão à missa de domingo. Esse problema não se poria há quarenta anos. É um facto. Trata-se de uma questão de prática religiosa, mas é sobretudo uma questão de formação religiosa. A deficiência da catequese explica que haja casais que, não obstante terem uma formação cristã muito insuficiente, desejam todavia entrar nas ENS. E isto recorda-me o que outrora vi no Brasil: lá eles tinham instituído anos de propedêutica, de preparação para a entrada nas ENS. É preciso fazer alguma coisa. Não temos o direito de desamparar casais que estão muito atrás, tanto no plano do pensamento como no plano da prática, mas que, apesar disso, querem juntar-se às ENS.
Em segundo lugar, outra coisa que antes não podia ter sido vista e que agora se compreende melhor: há casais que estão nas ENS há dez, vinte, trinta anos e que sentem a necessidade de ir mais longe. Conheço Equipas assim, conheço casais assim. Alguns confessam-se comigo há quarenta anos. E é maravilhoso ver a sua evolução. Ora, da mesma maneira que é preciso começar de mais baixo, talvez seja ainda maisnecessário ajudar os que querem ir mais longe. E não é fácil. É um problema que se apresenta a qualquer professor numa classe: vamos alinhar-nos pelos alunos médios, ou vamos, pelo contrário, pressionar os melhores a progredir, para formar homens mais instruídos? Não sei o que se há-de fazer. Não lhes dou respostas. Mas entristece-me ver que há casais que, depois de certo número de anos, se decepcionam com as ENS.
É certo que, na mesma Equipas de Nossa Senhora, há casais que não progrediram e têm grandes necessidades espirituais. Como fazer? Como responder a isto? Não sei, mas não se podem abandonar os que querem ir mais longe. Levanto uma questão, sem qualquer ideia pré--concebida. Na hora actual, alguns desses casais, que aspiram a uma vida mais santa, são tentados por comunidades onde se juntarão a celibatários, religiosas e sacerdotes. Há cinquenta anos que vejo casais tentados a fundar comunidades de casais. Mas nenhumas dessas comunidades, pelo menos das que conheço, têm durado no decurso destes cinquenta anos. Tenho-me perguntado por quê. Não haveria aí alguma coisa significativa? A verdade é que, ainda agora, há quem ponha esse problema. Não tenho resposta definitiva, mas verifico uma coisa: o casal é essa realidade muito sólida, muito coerente, de que lhes acabei de falar; e a comunidade conjugal corre o risco de dissolver-se um tanto numa comunidade mais ampla, sobretudo se esta for exigente, principalmente se for uma comunidade em que se leva vida em comum. Essa a minha experiência. O casal, de certa maneira, é e não é apoiado demais: homem e mulher acabam tendo sua responsabilidade diminuída. Pergunto-me se não estamos diante de uma grande lei: o casal é uma sociedade, uma comunidade que é necessário proteger antes de mais nada, mas que é autónoma. Nos Movimentos de casais - desde que correspondam à sua vocação - os casais, que vivem em pleno mundo, que vivem no meio dos ventos, encontram algo que os fortifica. Nas ENS eles não se dissolvem, não vêem diminuída a sua responsabilidade. Que fazer então? Que responder aos que levantam essa questão? Tocamos aqui no que lhes disse há pouco. Talvez a questão seja: que fazer para que aqueles, que têm preocupações espirituais mais exigentes, sejam ajudados nas ENS, e não procurem outro caminho? A quarta coisa que há cinquenta anos não se podia prever: essa multiplicação dos métodos e processos da contracepção. Isso é uma transformação formidável nas ENS, porque, se outrora a maior parte dos casais tinha uma grande preocupação de respeitar a lei de Deus, actualmente inúmeros casais das ENS praticam a contracepção, e isso preocupa-me enormemente. Não quero tratar do assunto, pois levaria tempo demais. Mas eles praticam a contracepção porque, como dizia há pouco, não ensinaram os jovens casais a compreender bem a qualidade da relação sexual; daí que a moralidade se lhes torna inaceitável. Mas quando um indivíduo transgride a lei do Senhor, diz-se que perde o estado de graça. Ora, quando num Movimento há uma grande proporção dos seus membros (não faço ideia de qual é a proporção, se de vinte, quarenta ou setenta por cento), uma grande proporção que desconhece, que não quer ouvir falar da lei de Deus, esse Movimento arrisca-se a perder o estado de graça e resvalar para a decadência e para a perversão.
Quinto e último ponto, que não era suficientemente visto no início, nem o podia ser, mas que o é agora: por favor, ajudem os casais equipistas a bem envelhecer, para bem morrer e para bem viver a sua viuvez. Conheço muitos desses amigos da primeira hora, que continuam nas Equipas. É preciso ter uma grande preocupação de ajudar os velhos a progredir na santidade. A velhice é um grande trunfo para progredir no amor de Deus. Já se fez o bastante nesse sentido? Confesso que não sei; não tenho acompanhado suficientemente as vossas publicações. Mas é necessário ajudar os casais a bem morrer, e ajudar também o vosso fundador a bem morrer ...
E antes da velhice e da morte, existe a reforma. Pergunto-me se as ENS têm feito bastante para fazer descobrir o sentido cristão da reforma, desse tempo de vida que é muito importante. Assinalo isso, sem me alongar mais. E depois há ainda esse drama do desemprego. As ENS terão feito descobrir a maneira cristã de viver o desemprego? Eis o que não podia ser visto há quarenta anos e que hoje enfrentamos.
Para terminar, tenho vontade de vos ler uma bela página, que alude ao que vos acabei de dizer. Publiquei-a outrora no «Anneau d’Or»:
Um homem já idoso resolveu escrever a história de seu casamento, na intenção de a dar a conhecer a sua numerosa família. Antes de acabar o primeiro capítulo, consagrado ao noivado, escreveu um «postscriptum» a esse capítulo. É o que vou ler: «Devia encerrar aqui este capítulo, mas quero acrescentar-lhe ainda algumas páginas. Seriam supérfluas, se eu tivesse a certeza de terminar a história da minha vida. Mas como poderia eu esperar, sem a mais extrema temeridade, que me será deixado tempo para levar até o fim a tarefa que me propus? Tenho setenta e sete anos completos. Porque ainda o posso fazer, e amanhã talvez o não possa, quero, na última página deste primeiro capítulo, prestar à minha querida Susana o testemunho que lhe devo. Oito anos mais nova do que eu, ela há de sobreviver a mim. Que lhe possa servir de algum lenitivo ler aqui, quando eu já não estiver a seu lado, o que em presença da morte eu penso dela. Ela fez a felicidade da minha vida. Depois de quarenta e cinco anos de vida em comum, amo-a mais do que a amava quando me abriu os braços pela primeira vez. A minha ternura por ela tornou-se, ao mesmo tempo, menos ardente e mais profunda. Ainda não dissemos tudo um ao outro. Os beijos calmos, os abraços sem violência, despertam a recordação das longínquas primaveras. Mas, sobretudo, as nossas almas confundem-se na mesma fé, na mesma esperança. Quando no decorrer do ano chega o dia 6 de Julho, para mim é doce e tão agradável repetir do fundo do coração o «sim» fatídico, como para um religioso, bem dentro da sua vocação, a renovação dos seus votos. Não teria sido assim se a minha Susana não tivesse praticado, com uma coragem que, por vezes, ia até ao heroísmo, os seus deveres de esposa e de mãe. Os meus gostos intelectuais, a minha incapacidade para ganhar dinheiro, o meu desprezo pelas mundanidades, a minha paixão pelos livros, e por certo, sem eu o perceber, muitas outras disposições tinham tudo para irritá-la, para magoá-la. Uma vez que me imponho a obrigação da verdade absoluta, não vou escrever que ela não sofreu com isso, que nunca me censurou, nem que eu não sofri ao ver o desgosto que lhe causava, contra a minha vontade. Mas ela manteve sempre, como o azul do céu por cima das nuvens, a vontade inalterável de tornar a minha vida agradável, e sensível à ternura do seu coração. Deu-me seis filhos, e escreveu-me todos os dias sempre que estivemos separados. Deu-me sem pedir nada em troca, apesar de todos os ataques do exterior e de todos os meus próprios defeitos, a sua estima reconfortante. Tem sempre um sorriso para mim. E fez tudo isto numa vida, em que os dias de doença, de miséria física, de luto e de sofrimento moral, foram quase tantos quantos os de saúde e serenidade. Deixarei a terra certo que, durante todo o tempo que me sobreviver, ela não cessará de rezar para que a porta do céu se abra para a minha alma. Que Deus a abençoe e a recompense. E que seus descendentes venerem a sua memória.» Como não desejar que seja assim para todos, e para todos os casais que ajudamos? Não quero tirar conclusões. Cabe a vocês concluir. Não a mim. Meu papel é simplesmente testemunhar, e de vos incitar à fidelidade, ao carisma fundador e à criatividade dentro dessa fidelidade. Mas, para terminar, quero fazer notar uma coincidência. Acontece que vocês celebram os quarenta anos da «Carta», neste ano que o Papa decretou ser um Ano Mariano. Sabem que esse Ano Mariano começa no próximo Pentecostes e termina na festa da Assunção de 1988. Pois bem, vejo nisso uma indicação providencial, porque a fé em Maria, no seu amor, na sua intercessão, esteve presente desde o começo das ENS, sendo. por isso, justamente, que se chamam Equipas de Nossa Senhora. Não foi por acaso. Por isso vos convido a renovar, mais do que nunca, esse voto de confiança na Virgem Maria, que presidirá ao destino das Equipas.
Ecce ... Fiat.
 
Conferência do Padre Henri Caffarel
No Encontro de Responsáveis Regionais da Europa,
Chantilly, 3 de Maio de 1987

Nenhum comentário:

Postar um comentário