"Homens da Galiléia, porque ficais aí a olhar para o céu? Esse Jesus
que vos acaba de ser arrebatado para o céu voltará do mesmo modo que o
vistes subir para o céu. (At 1,11) "
O RIGOR DAS PENAS
I. Acerbidade das penas do Purgatório
Ouvindo Santo Agostinho alguns de seu tempo dizer que, se
escapassem do inferno, do Purgatório não tinham tanto medo, encheu-se de
zelo e lhes fez ver o grande erro em que estavam, pois as penas do
Purgatório superam tudo o que há de mais penoso neste mundo.
E com razão, porque o fogo que atormenta as almas do
Purgatório é o mesmo que o fogo que atormenta os condenados no inferno,
somente com exceção da eternidade. E assim é que a Santa Igreja não
duvida chamar às penas do Purgatório penas infernais [na Liturgia dos
defuntos].
O fogo do Purgatório é aceso por um sopro infernal, e é tão
ativo que não se chama simplesmente fogo, mas espírito de fogo (Is 4,
4), e derreteria num instante um monte de bronze, mais facilmente que
uma de nossas fornalhas devoraria uma palha seca.
Tem ainda este fogo, além da atividade natural, uma
potência superior, que lhe dá Deus, para servir de instrumento ao Seu
furor.
Porém, diz o Senhor pelo profeta Zacarias, que Ele mesmo,
mais que o fogo, purgará e limpará a alma eleita, ativando com Seu
hálito as suas chamas (Zac 3, 9).
E qual não será o tormento das almas benditas naquele
cárcere por meses e anos! Podemos fazer dele uma [longínqua] idéia,
considerando que:
a) A alma, assim como é mais nobre que o corpo, é também
mais capaz de sentir vivamente, seja a alegria, seja o sofrimento;
b) A alma unida ao corpo, se sente dor, sente-a temperada
pelo mesmo corpo, e como que dividida entre ambos, servindo-lhe o corpo
de escudo e anteparo da dor. Mas no Purgatório, estando longe do
corpo, recebe diretamente sobre si toda a força da dor;
c) A alma unida ao corpo, se sofre no pé ou na mão ferida,
não sofre na cabeça ou noutros membros sãos; mas no Purgatório, sendo
indivisível e estando separada do corpo, é toda atingida pelas chamas.
Além do fogo, é a alma, no Purgatório, atormentada por si mesma, pensando:
a) Por quão ligeiras faltas está penando: por uma palavra
inútil, por um olhar curioso, por uma intenção menos reta, que tão
facilmente pudera evitar;
b) Que, podendo durante a vida tão facilmente descontar a
pena merecida por suas faltas com praticar algumas ações meritórias,
não o fez;
c) Que, deixando na terra filhos, amigos e herdeiros, que a
deviam aliviar naquelas chamas, não o fazem, e só pensam em desfrutar
dos bens que lhes deixou (Sl 30, 13). Com quanta razão se lamentará de
não ter descontado os seus pecados, dando esmolas, e empregando em
obras de caridade os bens que Deus lhe deu e que aumentou com tantos
suores?
Sobre tudo isto, acresce o maior tormento do Purgatório, que é a privação da visão de Deus.
São João Crisóstomo disse (Hom. 24 in c. 7 Mat.) que o
inferno do inferno é estar o condenado privado para sempre da visão de
Deus. Assim também se pode dizer que o Purgatório do Purgatório é estar
uma alma por muito tempo longe da visão de Deus. As almas são, pois,
atormentadas por dois verdadeiros e profundíssimos sentimentos: desejo e
amor.
O maior tormento de uma alma do Purgatório é desejar ir
para Deus, e não poder. Esta pena é tanto maior, quanto maior é o
conhecimento que lá a alma tem de Deus, pois, separada do corpo,
conhece mais claramente a suma bondade de Deus, e se sente movida com
maior força a ir para Ele, como a pedra para o seu centro.
Por isso, as suas maiores ânsias, no Purgatório, são
suspiros pela visão beatífica, de que já sente a aproximação, mas que
ainda não pode desfrutar. Clama ela, como o cego do Evangelho (Lc 18,
41): 'Senhor, que eu veja' essa luz da glória; que meus olhos desfrutem
já da presença divina! Para chegar mais depressa à visão de Deus, esta
alma preferiria que se lhe duplicasse o tormento do fogo, contanto que
findasse o tormento do desejo de ver a Deus.
Conta-se [por exemplo] de Rutília que, sabendo que seu
filho fõra condenado ao desterro para terras longínquas, se desterrou
também, para não padecer, longe dele, o tormento da saudade.
Mas muito maior que o desejo, é o tormento do amor.
Três são os amores que atormentam as almas do Purgatório:
a) O amor natural, pelo qual a alma, por uma inclinação
inata, é atraída para Deus como a Seu Criador, seu Princípio e último
Fim, com maior ímpeto que a pedra propende para o centro da terra ou a
chama para o ar;
b) O amor sobrenatural, pelo qual, [sob a ação da Graça,] é
a alma vivíssimamente atraída para Deus como seu sumo, único e eterno
Bem;
c) O amor de ardentíssima caridade, por saber que é esposa
do divino Cordeiro, Jesus Cristo, destinada ao Reino Celestial, e, no
entanto, vê que seu Esposo Divino lhe fecha a porta, e que seu amor é
assim frustado.
A todos estes tormentos se deve juntar a duração das penas, por meses, por anos e, talvez, até o fim do mundo.
Quanto se amedronta e aterra um malfeitor, ao ouvir a
sentença de ficar por algum tempo encerrado num cárcere escuro ou de por
três anos trabalhar nos porões das galés! Quanto se lamenta um enfermo
a quem se avisa de que terá de sofrer por um quarto de hora uma
dolorosíssima operação! E a quem não de gelar o sangue ao pensar que,
por seus pecados, há de estar sepultado nas chamas do Purgatório por
anos inteiros, e talvez até o dia do Juízo Final?!
Santo Agostinho diz que, no Purgatório, um dia é como mil anos (In Ps 37).
Assim é que a esperança e o desejo de ver a Deus, e de
passar de um excessivo tormento a uma indizível alegria, fará parecer
uma hora mais longa que um século.
Conta Santo Antonino que um enfermo havia muito tempo que
sofria horríveis dores. Apareceu-lhe o seu Anjo da Guarda e lhe propôs,
por ordem de Deus, que escolhesse: ou sofrer aquelas dores por mais um
ano, ou passar meia hora no Purgatório. O enfermo respondeu que
preferiria estar meia hora no Purgatório, pois assim acabava mais
depressa de sofrer. Pouco depois expirou, e o Anjo foi visitá-lo no
Purgatório. Ao ver o Anjo, a pobre alma começou a soltar gemidos
inconsoláveis, dizendo-lhe que a tinha enganado, pois, tendo-lhe
assegurado que estaria ali só meia hora, já eram passados vinte anos
que estava lá penando. Vinte anos? - replicou o Anjo - não passaram
mais que poucos minutos de tua morte, e teu cadáver ainda está quente
sobre o leito!
Tanto é verdade que as penas do Purgatório, em certo modo, -
sapiunt naturam aeternitatis -, têm um sabor de eternidade, por
parecer à imaginação do padecente que uma hora é como um século.
II. Dificuldade em evitar o Purgatório
Um mal qualquer, por maior que seja, se facilmente se pode
evitar, não é grande mal; mas um mal grande, que dificilmente se pode
evitar, torna-se extremo.
Tal é o Purgatório; pois, como atesta o cardeal e Doutor da
Igreja São Roberto Belarmino (De amis. grat., c. 13), até dos homens
mais santos e perfeitos, pouquíssimos são os que vão direto ao Paraíso.
O mesmo Santo, estando próximo à morte, recebeu a visita do
Geral da Companhia de Jesus, que, sabendo como era santíssima a vida
de Belarmino, lhe disse que todos tinham firme esperança de que, depois
da morte, ele voaria logo para o Céu. - 'Mas não a tenho eu, disse o
Santo; eu não tenho essa esperança'.
Santa Teresa d'Ávila conta que, sendo-lhe revelado o estado
de muitas almas na outra vida, só de três sabia que tivessem ido para o
Céu sem passar pelo Purgatório [e uma destas almas era ninguém menos
que um São Pedro de Alcântara].
Nem isto nos deve maravilhar. São Bernardo diz (Decl. sup.
Ecce nos) que, assim como não há obra boa, por mais pequena que seja,
que Deus não remunere largamente, assim não há mal, por mais ligeiro que
seja, que Deus não castigue severamente. Ora, sendo a alma mais justa e
santa sujeita a muitas imperfeições, naturalmente está exposta a ir
pagar por elas no Purgatório.
Se por um lado não quer Deus que nada impuro entre no Céu,
por outro não escapa a Seus olhos a mais ligeira mancha, que nós,
muitas vezes, nem chegamos a descobrir. Por isso diz a Escritura que até
nos Anjos encontra Deus que repreender (Job 4, 18), e que os mesmos
céus não são puros na Sua presença (Job 15, 15), e que até nas obras
dos justos encontra que emendar (Sl 74, 3).
O santo Jó, conhecendo esta minuciosa Justiça de Deus,
temia que as suas ações, ainda as mais santas, não Lhe fossem
plenamente agradáveis (Job 9, 28).
Oh! Como são terríveis os juízos de Deus, e como são
diversos dos d'Ele os juízos dos homens! O homem não vê senão o que
aparece por fora; Deus, porém, penetra o coração (1 Rs 16, 7).
O padre Baltasar Álvarez, da Companhia de Jesus, confessor
de Santa Teresa d'Ávila, era, por testemunho de sua Santa penitente, um
dos homens mais santos e piedosos de seu tempo. Um dia, ele pediu ao
Senhor que lhe revelasse quais eram as suas obras que mais O agradavam.
Deus Nosso Senhor ouviu a sua oração, e fez-lhe ver as suas obras no
símbolo de um cacho de uvas, em que umas eram verdes, outras amargas, e
só duas ou três estavam maduras, e estas ainda não de todo doces ao
paladar. 'Tais são, disse-lhe o Senhor, as tuas ações; delas só duas ou
três são boas, e mesmo nestas, se examinarem com rigor, não lhes
faltará que repreender'.
Daqui se vê como é severa a Justiça Divina em julgar as
ações dos homens, e como é difícil, ao morrer, estar um alma tão
purificada, que não fique nada por que satisfazer no Purgatório.
Não faltam exemplos na vida dos Santos que confirmam esta doutrina.
Na vida de São Severino se conta que, enquanto um clérigo
passava um rio, apareceu-lhe um sacerdote e, tomando-lhe a mão, a
queimou toda, dizendo: Isto sofro no Purgatório por não rezar as Horas
canônicas com atenção.
De São Martinho escreve São Gregório Turinense que, orando
no sepulcro de sua irmã e recomendando-se a ela como a santa, de
repente ela lhe apareceu, vestida do hábito de penitente, com o rosto
triste e pálido, e lhe disse que ainda estava no Purgatório, por ter
penteado o cabelo na Sexta-Feira Santa, não se lembrando que era o dia
da Paixão do Senhor.
A irmã de São Pedro Damião, como ela mesma revelou a uma
santa alma, foi condenada a penar dezoito dias no Purgatório, por ter,
de sua cela, ouvido curiosamente os cantos e músicas que entoavam
debaixo da janela.
São Severino, Arcebispo de Colônia, foi condenado a um
gravíssimo Purgatório, por ter recitado as Horas canônicas sem a devida
distinção de tempos, apesar de serem muitos os negócios de seu
palácio, que parece o desculpariam.
Entremos agora dentro de nós mesmos, e tiremos a
conseqüência, que tirou também Santo Antonino depois de contar a seus
religiosos semelhantes exemplos: 'Tema, pois, cada um de vós, cometer
pecados veniais e não se purificar deles nesta vida'.
Se Deus é tão severo em punir no Purgatório as menores
faltas, e se é tão difícil, mesmo para as almas mais perfeitas,
evitá-lo, como é que me atrevo a acumular pecados veniais em minha vida,
sem fazer penitência deles?... E se aqui me parece insuportável uma
pequena agulha, que será sofrer aquele fogo atrocíssimo?... Por que não
procuro depurar as minhas ações de toda impureza, e fazer penitência
pelos pecados cometidos?... Andemos sempre alumiados pelas chamas do
Purgatório, para evitarmos, com a perfeição de nossas obras, cair
naqueles horríveis tormentos (Is 40, 11).
III. Como devemos evitar o Purgatório
É verdade de Fé que ninguém entra no Céu sem estar de todo
purificado (Apoc 21, 17), e sem primeiro ter satisfeito todas as suas
dívidas à divina Justiça (Mt 5, 26). Deste modo, ou havemos de punir em
nós mesmos, nesta vida, os nossos pecados, ou então Deus se
encarregará de os castigar depois da nossa morte. Não há como escapar,
diz Santo Agostinho (Conc. 1 in Ps 58).
Quem, na vida, não apaga os pecados com as lágrimas da
penitência, depois da morte se purificará deles com as chamas do
Purgatório. Ora, não é melhor lavar os pecados com água do que com
fogo?
Na vida, com um dia de penitência, e até com uma hora,
podemos satisfazer por nossos pecados o que no Purgatório nem por um
ano expiaríamos. Ora, não é melhor padecer por um pouco, neste mundo,
que padecer no outro por longo tempo, que pode ser até o dia do Juízo?
Ajuntemos que a penitência feita em vida é meritória, e
depois da morte nada merece. Ainda que penemos por mil anos no
Purgatório, não adquiriremos um novo grau de graça, nem um novo grau de
glória no Céu.
E não é mais sensato sofrer pouco e por pouco tempo, e com
mérito, do que sofrer muito e por muito tempo, e sem mérito nenhum?
Finalmente, a Divina Justiça fica mais satisfeita com a
penitência, ainda que pequena, feita nesta vida, do que com a pena,
ainda que maior, tolerada depois da morte; porque a primeira é um
sacrifício voluntário e uma pena tomada espontaneamente, ou
espontaneamente aceita, ao passo que a segunda é um sacrifício forçado,
e uma pena tolerada por necessidade e contra vontade.
Por todas estas razões se vê claramente quanto importa
descontar, nesta vida, as penas que devemos a Deus por nossos pecados,
pela enorme vantagem de nos livrarmos, desta maneira, dos males do
Purgatório.
Frutos
Consideremos os frutos que devemos tirar desta
doutrina, para nos resolvermos a evitar o Purgatório, usando de todos
os meios que a isto nos possam ajudar.
O primeiro é fazermos agora, por nós mesmos, penitência dos
nossos pecados, e praticar boas obras o mais que pudermos, e não pôr a
nossa esperança em sufrágios futuros. E isto devemos fazer sem demora,
antes que sejamos assaltados por algum acidente (Gál 6, 10).
O segundo é pôr todo o cuidado em ganhar as santas
indulgências, com as quais satisfaremos por nossos pecados com a
satisfação e méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O terceiro, finalmente, é usar de piedade com as almas do
Purgatório, ajudando-as com os nossos sufrágios, obras e orações,
porque Deus disporá que aquela caridade que usamos com os outros seja
também usada conosco (Mt 7, 2). Depois essas almas, quando estiverem no
Céu, serão gratíssimas para conosco, obtendo-nos muitas graças de
Deus. Feliz de quem salvou uma alma do Purgatório com seus sufrágios,
porque terá diante de Deus quem interceda por ele, quando também
estiver penando naquele lugar.
Conta Bernardino de Bustis que morreu um pai, e com seus
bens deixou um filho riquíssimo. Este ingrato filho não pensou mais em
quem tanto o tinha beneficiado, pois nunca mandou sufragar a alma de
seu pai, que ardia no Purgatório. Ora, que aconteceu? Ainda que os seus
capitais fossem avultadíssimos, contudo estava sempre em penúria.
Contínuas tempestades lhe destruíam as plantações, males imprevistos
dizimavam-lhe os rebanhos, incêndios e desastres arruinavam-lhe a casa.
Já os pleitos, já o fisco, já os inimigos o obrigavam a gastos
desmedidos. Um dia, encontrando-se com um servo de Deus, pediu-lhe que o
recomendasse em suas orações. Fê-lo o santo varão, a quem foi revelado
que aquele filho ingrato não podia desfrutar dos bens herdados, porque
tinh a o pai no Purgatório, que o amaldiçoava, e as suas maldições
eram aceitas da Divina Justiça pela sua perversa ingratidão.
Façamos bem aos nossos defuntos, que o mesmo farão conosco (Ecli 12, 2).
Imaginemos que Jesus Cristo diz a cada um de nós a respeito
dos nossos defuntos, o que disse a respeito de Lázaro: 'Desatai-o e
deixai-o ir' (Jo 11, 44).
(Padre Alexandrino
Monteiro S. J., Exercícios de Santo Inácio de Loyola, II Edição,
Editora Vozes, Petrópolis: 1959, páginas 80-90). (Gentileza Rodrigo)
Publicado no Blog: http://www.ultimasmisericordias.com.br/Pagina/3412/O-RIGOR-DAS-PENAS